sexta-feira, 5 de outubro de 2012

TRICICLO DOURADO


4 de Outubro de 2012

40 – TRICICLO DOURADO


Do outro lado da cortina de água encontra-se um triciclo dourado. As rodas, o volante e o selim são da cor do ouro mais puro.
João Miguel recorda o triciclo que a avó Dulce lhe ofereceu no Natal quando tinha quatro anos de idade. Era igualzinho a este, só que vermelho, com as rodas brancas e um selim preto ajustável. Ele passava as tardes a pedalar na cave ao redor de uma mesa velha que por lá se encontrava esquecida. Servia para indicar o percurso, e fazia curvas e mais curvas para a esquerda, à volta dela. Depois virava o triciclo cento e oitenta graus, e dava curvas e mais curvas para a direita.
Quando se cansava de repetir dezenas de vezes o circuito, levantava-se do triciclo e arrastava-o como podia através dos dois lanços de escadas para fora da cave bafienta. De seguida punha-se a conduzir a viatura pelo jardim, onde havia uma zona com gravilha por onde era difícil avançar. As rodas ficavam presas e só a muito custo conseguia passar para o outro lado desse caminho, já feito de terra forrada com ervas daninhas. Quando estava seca, pedalava com gosto pelo meio de pequenas sebes labirínticas, como se elas fossem os prédios de uma cidade imaginária. Sentia-se o melhor condutor do Mundo.
Enquanto o João Miguel vai revivendo estas lembranças, o triciclo dourado cresce até ficar do tamanho de uma bicicleta.
O selim está ao nível da cintura do menino, a brilhar como nunca, pedindo-lhe que suba e que não perca tempo com recordações.
- Que triciclo maravilhoso! A casa de Zebedeu tem tantos objetos extraordinários.
Assim que termina o comentário, o triciclo responde-lhe com uma voz irritada:
- Ouve lá, vais demorar muito? Temos um longo caminho pela frente. Até parece que nunca viste nada, ó rapazinho. Se pudesses ver a tua cara de espanto! Sobe, senta-te e pedala! Eu te direi por onde havemos de avançar.
A viatura fala. A sua voz rouca e irritada sai da zona central junto ao volante onde, normalmente, se colocam os faróis.
- Ora essa! Mas… tu falas? Eu nunca vi um triciclo falante. Que coisa tão amalucada! Tu não só és muito bonito como também tens o dom da palavra.
O triciclo fica impaciente pois não gosta de perder tempo com este tipo de conversas, e começa a dar ordens aos berros:
- SOBE, SENTA-TE e PEDALA, JÁ TE DISSE! SERÁ QUE QUERES FICAR AQUI PARA SEMPRE?
E sem mais demoras, o João Miguel obedece à voz de comando.
Sobe, senta-se, deposita a sacola num cesto que surge de forma mágica atrás de si, por cima do eixo traseiro do velocípede, e prepara-se para pedalar.
- COLOCA OS PÉS NOS PEDAIS E SEGURA-TE BEM. A PRIMEIRA PEDALADA TEM DE SER MUITO VIGOROSA, SENÃO ARRISCAS-TE A FICAR AQUI PARA SEMPRE.
O menino recorda de novo as tardes em que ficava parado no seu triciclo, atolado na gravilha do jardim. Tinha de fazer uma tremenda força com as pernas para conseguir de lá sair.
De olhos fechados, agarra o volante com genica, fixa com vigor as botas militares nos pedais de ouro e jura a si mesmo usar as pernas como fazia nessas tardes de Verão.
Mantém os olhos cerrados e dá um impulso inicial tão poderoso que o triciclo dourado arranca numa velocidade estonteante.
Se o João Miguel não se tivesse agarrado ao volante com tanta vontade, teria sido projetado para trás e cairia com violência no meio do chão.
Vai arriscar abrir os olhos.
Vai arriscar olhar para perceber como é possível um simples triciclo deslocar-se com tamanha rapidez.
Observa um grande funil pintado com todas as cores do arco-íris. Elas surgem luminosas e desnorteadas de um pequeno ponto escuro que se encontra mesmo à sua frente. E o triciclo volta a comandar:
- NÃO LARGUES O VOLANTE MEU RAPAZ! AGARRA-TE BEM! SE CAIRES VAIS FICAR PERDIDO NO MEIO DESTE IMENSO NADA E SERÁ COMO SE NUNCA TIVESSES EXISTIDO!
O João Miguel fica receoso com estas palavras e abranda ligeiramente o ritmo da pedalada.
- NÃO, NÃO, TENS DE CONTINUAR A PEDALAR COM TODAS AS TUAS FORÇAS! SE NÃO O FIZERES PODEMOS FICAR OS DOIS AQUI PERDIDOS PARA SEMPRE!
As pernas do menino voltam a pedalar num ritmo frenético e o triciclo segue o seu caminho através deste novo túnel luminoso que parece não ter fim.
Sempre que ele se prepara para baixar a velocidade da corrida, o triciclo fica menos brilhante.
A viatura misteriosa adivinha as intenções do João Miguel, que já começa a sentir-se fatigado.
- NÃO, NÃO, AI DE TI SE AS PERNAS FRAQUEJAREM! AI DE NÓS QUE VAMOS FICAR AQUI PERDIDOS PARA TODO O SEMPRE!
Cansado de ouvir as palavras agoirentas do triciclo dourado, o menino resolve contrariá-las e deixa de pedalar.
Nesse preciso instante é projetado pelo ar como uma bala. Dá voltas e mais voltas, piruetas e mais piruetas no meio de uma escuridão total.
O triciclo desapareceu. Ficou imóvel, lá muito atrás, no local onde o João Miguel decidiu parar de pedalar.
A cabeça do menino gira como um pião, rodopia, tal como o corpo, e o estômago ganha rebeldia. Agoniado com tantas reviravoltas, ele fica de tal modo indisposto que começa a vomitar.
O voo continua. Tornou-se húmido e malcheiroso neste imenso vazio que vai ficando mais frio a cada cambalhota.
Lá de muito longe, de muito, muito longe, escutam-se as últimas palavras do triciclo dourado:
- AI DE TI! AI DE NÓS QUE VAMOS FICAR AQUI PERDIDOS PARA s e m p r e . . . . . .

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