4 de Outubro de 2012
40 – TRICICLO DOURADO
Do outro lado da cortina de água encontra-se um
triciclo dourado. As rodas, o volante e o selim são da cor do ouro mais puro.
João Miguel recorda o triciclo que a avó Dulce lhe
ofereceu no Natal quando tinha quatro anos de idade. Era igualzinho a este, só
que vermelho, com as rodas brancas e um selim preto ajustável. Ele passava as
tardes a pedalar na cave ao redor de uma mesa velha que por lá se encontrava
esquecida. Servia para indicar o percurso, e fazia curvas e mais curvas para a
esquerda, à volta dela. Depois virava o triciclo cento e oitenta graus, e dava
curvas e mais curvas para a direita.
Quando se cansava de repetir dezenas de vezes o circuito,
levantava-se do triciclo e arrastava-o como podia através dos dois lanços de
escadas para fora da cave bafienta. De seguida punha-se a conduzir a viatura
pelo jardim, onde havia uma zona com gravilha por onde era difícil avançar. As
rodas ficavam presas e só a muito custo conseguia passar para o outro lado
desse caminho, já feito de terra forrada com ervas daninhas. Quando estava
seca, pedalava com gosto pelo meio de pequenas sebes labirínticas, como se elas
fossem os prédios de uma cidade imaginária. Sentia-se o melhor condutor do
Mundo.
Enquanto o João Miguel vai revivendo estas lembranças,
o triciclo dourado cresce até ficar do tamanho de uma bicicleta.
O selim está ao nível da cintura do menino, a brilhar
como nunca, pedindo-lhe que suba e que não perca tempo com recordações.
- Que triciclo maravilhoso! A casa de Zebedeu tem
tantos objetos extraordinários.
Assim que termina o comentário, o triciclo
responde-lhe com uma voz irritada:
- Ouve lá, vais demorar muito? Temos um longo caminho
pela frente. Até parece que nunca viste nada, ó rapazinho. Se pudesses ver a
tua cara de espanto! Sobe, senta-te e pedala! Eu te direi por onde havemos de
avançar.
A viatura fala. A sua voz rouca e irritada sai da zona
central junto ao volante onde, normalmente, se colocam os faróis.
- Ora essa! Mas… tu falas? Eu nunca vi um triciclo
falante. Que coisa tão amalucada! Tu não só és muito bonito como também tens o
dom da palavra.
O triciclo fica impaciente pois não gosta de perder
tempo com este tipo de conversas, e começa a dar ordens aos berros:
- SOBE, SENTA-TE e PEDALA, JÁ TE DISSE! SERÁ QUE
QUERES FICAR AQUI PARA SEMPRE?
E sem mais demoras, o João Miguel obedece à voz de
comando.
Sobe, senta-se, deposita a sacola num cesto que surge
de forma mágica atrás de si, por cima do eixo traseiro do velocípede, e
prepara-se para pedalar.
- COLOCA OS PÉS NOS PEDAIS E SEGURA-TE BEM. A PRIMEIRA
PEDALADA TEM DE SER MUITO VIGOROSA, SENÃO ARRISCAS-TE A FICAR AQUI PARA SEMPRE.
O menino recorda de novo as tardes em que ficava
parado no seu triciclo, atolado na gravilha do jardim. Tinha de fazer uma
tremenda força com as pernas para conseguir de lá sair.
De olhos fechados, agarra o volante com genica, fixa
com vigor as botas militares nos pedais de ouro e jura a si mesmo usar as
pernas como fazia nessas tardes de Verão.
Mantém os olhos cerrados e dá um impulso inicial tão
poderoso que o triciclo dourado arranca numa velocidade estonteante.
Se o João Miguel não se tivesse agarrado ao volante
com tanta vontade, teria sido projetado para trás e cairia com violência no
meio do chão.
Vai arriscar abrir os olhos.
Vai arriscar olhar para perceber como é possível um simples
triciclo deslocar-se com tamanha rapidez.
Observa um grande funil pintado com todas as cores do
arco-íris. Elas surgem luminosas e desnorteadas de um pequeno ponto escuro que
se encontra mesmo à sua frente. E o triciclo volta a comandar:
- NÃO LARGUES O VOLANTE MEU RAPAZ! AGARRA-TE BEM! SE
CAIRES VAIS FICAR PERDIDO NO MEIO DESTE IMENSO NADA E SERÁ COMO SE NUNCA
TIVESSES EXISTIDO!
O João Miguel fica receoso com estas palavras e
abranda ligeiramente o ritmo da pedalada.
- NÃO, NÃO, TENS DE CONTINUAR A PEDALAR COM TODAS AS
TUAS FORÇAS! SE NÃO O FIZERES PODEMOS FICAR OS DOIS AQUI PERDIDOS PARA SEMPRE!
As pernas do menino voltam a pedalar num ritmo
frenético e o triciclo segue o seu caminho através deste novo túnel luminoso
que parece não ter fim.
Sempre que ele se prepara para baixar a velocidade da
corrida, o triciclo fica menos brilhante.
A viatura misteriosa adivinha as intenções do João
Miguel, que já começa a sentir-se fatigado.
- NÃO, NÃO, AI DE TI SE AS PERNAS FRAQUEJAREM! AI DE
NÓS QUE VAMOS FICAR AQUI PERDIDOS PARA TODO O SEMPRE!
Cansado de ouvir as palavras agoirentas do
triciclo dourado, o menino resolve contrariá-las e deixa de pedalar.
Nesse preciso instante é projetado pelo ar
como uma bala. Dá voltas e mais voltas, piruetas e mais piruetas no meio de uma escuridão total.
O triciclo desapareceu. Ficou imóvel, lá
muito atrás, no local onde o João Miguel decidiu parar de pedalar.
A cabeça do menino gira como um pião,
rodopia, tal como o corpo, e o estômago ganha rebeldia. Agoniado com tantas
reviravoltas, ele fica de tal modo indisposto que começa a vomitar.
O voo continua. Tornou-se húmido e
malcheiroso neste imenso vazio que vai ficando mais frio a cada cambalhota.
Lá de muito longe, de muito, muito longe,
escutam-se as últimas palavras do triciclo dourado:
- AI DE TI! AI DE NÓS QUE VAMOS FICAR AQUI
PERDIDOS PARA s e m p r e . . . . . .
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