quinta-feira, 18 de outubro de 2012

ESPIRRO LIBERTADOR




18 de Outubro de 2012

46 – ESPIRRO LIBERTADOR

Dom Raimundo nada pelo fundo do lago, sem pressas, formando longos esses com o corpo serpenteante.
As notícias da cidadela também aqui chegaram.
O velho jacaré não gostou nada de saber que Mestre Tino e os seus ministros tenham encarcerado os reis Alberto e Alberta nos calabouços do palácio. Se não estivesse tão velho e cansado, já teria ido até Okatonga para resolver a situação. A sua idade avançada não lhe permite partir nessa aventura, mas a vontade é grande e continua a espicaçá-lo.
Enquanto pensa, nada tranquilo a transportar o menino e o Renato dentro da sua boca enorme.
O sapo treme, treme muito, todo enrolado como uma pequena bola de borracha de um verde sumido.
- Ai, ai, João Miguel! O que será que nos irá acontecer? Ai minha mãezinha, estou com tanto, tanto medo! Preferia voltar a estar amarrado à árvore, preso pela teia da Dona Suzete. Não sei como consegues estar assim tão calmo. Tu és valente, João Miguel, mas desta vez acho que estamos condenados. O jacaré vai acabar por nos engolir! Ai de mim, ai de nós! Estamos fritos!
O menino tenta arranjar explicação para um estranho fenómeno. Ele consegue escutar as vozes de Renato e Dom Raimundo, apesar de estarem dentro de água a uma profundidade considerável. As vozes são idênticas aos sons que fazem as baleias, são iguais às que viu num documentário acerca da vida animal que passou na televisão.
- Ó Renato, não estejas assim tão nervoso. Se Dom Raimundo nos quisesse comer, com certeza já o teria feito. Se calhar, a maçã que comeste estava estragada.
O sapo dá razão ao João Miguel. Se o jacaré os desejasse comer, a esta hora estariam dentro do estômago do bicharoco.
- Vem cá, vem até aqui apreciar a paisagem. É como visitar um oceanário mas muito melhor pois estamos dentro dele a viajar. Repara nas pedras do lago. São maravilhosas, cheias de cores como os corais. E os peixes são muito bonitos. São pequenos, brilhantes e curiosos. Olham para nós com tanta admiração como olhamos para eles. São tão engraçados!
Renato fica menos nervoso e ganha um tom de verde mais vistoso.
Já não é uma bola, os braços e as pernas mexem-se e ele lá acaba por se arrastar para perto do menino.
Receoso, decide espreitar por entre dois dentes afiados de Dom Raimundo.
- HUAAUUU! Que maravilha! Tantos peixes, tantas cores, que água tão cristalina, que pedras espetaculares! Nunca estive num lago assim tão vibrante. Apenas conheço poças, pântanos, charcos lamacentos de águas estagnadas e lodosas, riachos apertados e rios desinteressantes. Isto aqui é uma outra Okatonga! Que lago assombroso! Na cidadela nunca ouvimos falar da sua existência.
O grande jacaré esboçou um ligeiro sorriso. Sem dizer qualquer palavra, está a conseguir contar a sua história.
Dom Raimundo transformou o grande lago num imenso império subaquático. Com grande sabedoria e coragem, impôs a sua visão e vontade a todos os habitantes, tendo ganho o seu respeito e consideração.
Ao início, a tarefa não foi fácil. Outros jacarés tentaram destruir tudo o que ele ia modificando.
Os primeiros anos foram marcados por muitas batalhas entre Dom Raimundo e os seus rivais. A mais famosa de todas foi a célebre luta que travou com o malvado senhor Proença, um jacaré que tinha o corpo marcado com mais de duzentas cicatrizes que herdara em outras tantas disputas. Ninguém assistiu ao combate, ninguém sabe ao certo o que aconteceu. Após duas horas de confronto, Dom Raimundo regressou vitorioso e foi nomeado governador supremo destas águas profundas. Quanto ao senhor Proença, desapareceu para sempre e nunca mais foi avistado.
Após esse dia nenhum jacaré se atreveu a desrespeitá-lo ou ousou ameaçá-lo.
- Então? Estão a gostar do passeio? Encontraram-me com facilidade, seus sortudos! Eu sei quem vocês são. As notícias de Okatonga chegam aqui mais depressa do que à casa de Zebedeu. O gato Sarmento já me conhece há mais anos do que aqueles que trabalha para o anão. Antes de lhe ir contar as novidades, fala primeiro comigo. Bebemos umas cervejas enquanto conversamos, jogamos umas partidas de damas e fumamos um charuto. Só depois é que abala até à morada do alquimista. Por isso sei que Okatonga está virada do avesso, e sei que tu tens de salvar os reis de nosso reino! És tu que terás de salvar os reis do nosso reino, porque eu já me sinto velho e cansado.
Renato fica branco como a cal das paredes.
Os olhos vermelhos faíscam e iluminam o interior da boca de Dom Raimundo.
A ser verdade o que acaba de dizer, o Sarmento conhece este lago e o seu governador. O malandro do felino guardou segredo acerca deste lugar durante anos. Nunca disse nada a ninguém.
Os sapos, afinal, tinham boas razões para suspeitar dos porteiros da cidadela de Okatonga. Oxalá o gato não tenha dado com a língua nos dentes, oxalá não tenha dito alguma coisa ao Medina. Os dois nunca se deram lá muito bem, mas são uns grandes aldrabões. O Renato sabe que não são gatos de confiança. Se o Sarmento falou, Mestre Tino e os ministros já sabem da existência do lago e devem ter enviado as suas tropas.
- Estou muito preocupado, João Miguel, mesmo muito preocupado!
O menino olha para dentro da boca iluminada do jacaré e fica espantado com a cara que o batráquio está a fazer.
- O que foi, Renato? O que é que te preocupa agora? Ainda tens medo que Dom Raimundo nos possa comer?
O corpo do sapo fica das cores do arco-íris e os seus olhos faíscam como nunca.
- Não, é pior, muito pior! Tenho a certeza absoluta que Dom Raimundo nos está a levar para uma margem do lago onde estão tropas de Mestre Tino para nos prender.
O João Miguel não quer acreditar nas palavras de Renato.
Será que o amigo ficou doidinho de vez?
- O que é que tu estás para aí a dizer? Mas que ideia a tua, Renato! Só te passam tragédias pela cabeça.
Renato fica com vontade de explodir, e desata a berrar dentro da boca do velho jacaré.
- AI TU ACHAS QUE EU ESTOU A BRINCAR, ACHAS? ISTO É TUDO UM PLANO BEM ESTUDADO PELO ESPIÃO DE MESTRE TINO! FOI BELCHIOR QUEM NOS ENSINOU O CAMINHO E NOS TROUXE ATÉ AQUI. FOI ELE QUEM TE LEVOU ATÉ À CIDADELA E TE ENFIOU NA CARRUAGEM PARA DEPOIS TE PRENDEREM. SERÁ QUE AINDA NÃO PERCEBESTE, JOÃO MIGUEL? É UM PLANO ENGENHOSO PARA TE PRENDEREM! É ISSO QUE ELES PRETENDEM! TEMOS DE SAIR DAQUI O QUANTO ANTES, TEMOS DE FUGIR O MAIS RÁPIDO QUE CONSEGUIRMOS!
O menino reage por instinto às palavras chocantes do sapo Renato. Abre a sacola e espalha pimenta Habanero para cima da língua do velho jacaré, que logo solta um espirro tremendo.
- ATCHIIIIIMMMMMMMMMMMM………….
O sapo e o menino são cuspidos da boca de Dom Raimundo a uma velocidade arrepiante.
O jacaré está aflitíssimo.
Espirra sem parar nas profundezas do grande lago.
Os seus olhos estão embaciados com lágrimas de dor.
Renato e João Miguel aproveitam e nadam velozes para bem longe dali.
- Só espero que tenhas razão, Renato, caso contrário devemos um milhão de desculpas ao velho jacaré.
O sapo mal escuta o menino, pois está concentradíssimo a nadar o mais depressa que sabe e que pode até um lugar seguro.
- Manter a tua liberdade é o que mais importa, João Miguel. Tens de cumprir a missão, tens de salvar os reis do nosso reino.

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