quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

UM SONINHO DESCANSADO


12 de Dezembro de 2012

60 – UM SONINHO DESCANSADO

O grande buldogue foi derrotado.
A notícia da vitória de João Miguel espalhou-se com rapidez pelo reino de Okatonga, e depressa chegou à capital.
Os habitantes da cidadela começam a sair às ruas para festejar o grandioso feito de João Miguel:
- VITÓRIA! VITÓRIA! Os nossos reis vão ser libertados! Okatonga voltará a ser vibrante e luminosa! VITÓRIA, VITÓRIA! – grita o povo com alegria.
Em Okatonga mais ninguém voltará a sentir medos, a ter receios ou a suspeitar de alguém.
Os muros e a extensa muralha da cidadela serão destruídos pois deixaram de fazer sentido. Foram mandados construir para impedir possíveis fugas da capital. Mestre Tino e os seus ministros obrigavam a população a trabalhar para si, e ninguém podia desobedecer às suas estranhas ordens.
Mas tudo isso terminou agora que o João Miguel conseguiu cumprir a sua missão.

*

Os céus do reino de Okatonga enchem-se de pássaros. As aves carregam às costas os soldados-sapos, que também desejam festejar. A grande coruja Beatriz segue no meio do monumental bando com Esmeralda às costas, e o valente sapo Renato segue encavalitado num imenso albatroz.
Papagaios, falcões, pombas, mochos, águias, cegonhas, andorinhas, milhafres, centenas de corujas e muitos outros pássaros de mil espécies juntaram-se nos ares para testemunharem a entrega da chave da liberdade ao menino aprendiz de alquimista.
Sarmento também regressa à cidadela, contentíssimo com a façanha do menino de pijama:
- Nunca duvidei do rapaz, nunca! Os seus olhos brilham como a estrela da noite e as suas palavras são ditas com uma convicção ímpar. No coração do menino habita a verdade e a coragem dos justos. Hoje é um grande dia para o nosso reino! – exclama o vaidoso gato-guarda.
Todos se dirigem para o farol dos jardins reais. É ali que se vai realizar a cerimónia de entrega das chaves a que ninguém deseja faltar.

*

O buldogue ditador está nervoso.
Perder era algo que ele não concebia, e a derrota aconteceu porque Tino menosprezou este menino tão novo de aparência franzina. Foi por isso que ficou ainda mais transtornado.
De súbito, num impulso imprudente, Mestre Tino levanta a tampa da caixa de escaravelhos que mantém junto a si. De imediato saltam do seu interior milhares de escaravelhos. O buldogue, a raposa Judite, o gato Medina, o macaco Isidoro e os gatos Amora e Aroma ficam tapados pelos insetos que trepam por eles acima. O jacaré Dom Raimundo, a aranha Suzete e o coronel-sapo também acabam por ficar cobertos de escaravelhos. Os ministros de Tino e o buldogue ditador estão transformados em estátuas feitas de insetos, com exceção de Belchior, que tem os olhos vidrados de medo e o corpo a tremer como uma gelatina acabada de desenformar.

Um, dois, três, quatro, eis o triste resultado
Cinco, seis, sete, oito, de ser um bicho malvado
Nove, dez, onze, doze, o corpo fica fechado

Um, dois, três, quatro, vou também desaparecer
Cinco, seis, sete, oito, assim tem de acontecer
Nove, dez, onze, doze, para a história renascer

O coelho Belchior transforma-se numa estátua de escaravelhos cintilantes.
Antes do menino conseguir dizer alguma coisa, os insetos regressam ao interior da caixa tão depressa como surgiram.
Quando o último dos bichos rastejantes se prepara para desaparecer, Esmeralda surge a correr por detrás do farol, salta-lhe para cima e esmaga-o com o pé direito, para grande espanto do João Miguel.
A menina fecha a caixa de imediato, com a chave dourada que caíra da boca de Mestre Tino, dando duas voltas à fechadura.
Todos os pássaros, o exército de sapos e Dona Beatriz sorriem de contentamento com o que acaba de acontecer.
- Olá João Miguel! Mestre Tino e os seus ministros nunca mais nos vão incomodar. - diz Esmeralda com convicção. – Enquanto esta caixa permanecer fechada, mal algum cairá sobre Okatonga, e todos os habitantes vão poder viver em paz!
- E agora? – pergunta o menino.
- Toma, João Miguel. – responde Esmeralda estendendo-lhe a caixa. – Este é o teu prémio. Sobe as escadas do farol, usa a chave dourada para libertares os reis do nosso reino. Tu decidirás se ficas com a caixa como recordação da aventura, ou se a devolves ao rei Alberto, para ele a guardar em lugar seguro. Mestre Tino preferiu abri-la para não ter de te entregar a chave dourada, conforme mandam as regras. O tirano nunca foi derrotado, e preferiu, por isso, agir dessa maneira.
- Então, isto que aconteceu, foi apenas um jogo? O que teria acontecido se eu não tivesse chegado a tempo às masmorras reais? – pergunta João Miguel com surpresa.
A resposta é dada de imediato, pela bonita Esmeralda:
- O mesmo que aconteceu a Mestre Tino e aos ministros. Os escaravelhos teriam saído da caixa para te cobrir. Ficarias transformado numa estátua de insetos, que depois desapareceria de regresso a essa caixa de madeira que acabei de te entregar. Serias tu quem agora estaria dentro dela, e não aqueles que derrotaste, e o reino de Okatonga teria desaparecido para todo o sempre.
O menino ficou muito vermelho, apesar de sentir alguma vaidade por ter vencido o feroz ditador, e experimenta uma ponta de tristeza pelo desaparecimento de animais tão fascinantes.
- Vai, João Miguel, não esperes mais! Sobe as escadas e liberta os nossos reis! Zebedeu já sabe tudo acerca do teu grande triunfo, e está muito feliz. A ele se fica a dever a tua vinda a Okatonga. Só ele sabia quem podia salvar os nossos reis e tornar-se no mais fantástico aprendiz de alquimista de todos os tempos. – explica a menina da floresta.
Esmeralda abraça João Miguel com grande carinho, dá-lhe um beijo apaixonado, e torna-se invisível pela última vez.
- ESMERALDA! ESMERALDA, espera por mim, onde estás? Deixa-me olhar para ti, não desapareças assim tão depressa. Esmeralda, ESMERALDA! – grita o menino.
Mas a menina não regressa, nem lhe deixa qualquer pista.

*

Falta-lhe apenas subir os duzentos e vinte e dois degraus do farol para libertar os reis caracol. Mal começa a subida da escadaria de pedra, logo o seu coração bate mais depressa.
Ao chegar ao cimo, os degraus começam a parecer-lhe tão familiares.
Os degraus que o menino agora sobe já não são do farol.
João Miguel não reparou, mas as escadas de pedra transformaram-se nas escadas da sua própria casa, quando faltavam menos de dez degraus para chegar ao topo.

*

O menino alcança, sem dificuldade, o corredor do primeiro piso de sua casa, onde fica o seu quarto, o quarto da mãe e o quarto da avó Dulce. O topo do farol, onde ele esperava encontrar a prisão envidraçada dos reis Alberto e Alberta, é o corredor anexo aos quartos.
A caixa de madeira continua bem apertada nas mãos, as botas militares estão calçadas, ainda húmidas, o pijama está rasgado e roto nos dois joelhos e o saco de pele do anão Zebedeu continua a tiracolo. Se assim não fosse, era-lhe impossível afirmar que Okatonga existe, de verdade, dentro do saco invisível das histórias da mãe. É lá que se esconde esse reino mágico, misterioso, fascinante e colorido.
- Nem pensar dizer uma só palavra acerca disto à mãe! – pensa o menino ao avançar, sem ruído, até à porta do seu quarto.
Entra devagar, devagarinho, descalça-se e guarda a caixa, o saco de cabedal, e as botas pretas, debaixo da cama junto à grande coleção de legos que lá habita.
Com um sorriso luminoso como o sol, deita-se, tapa-se, e fica muito quieto, por instantes, a sentir todo o aconchego da cama.
- Esta é mesmo a minha casa e este é mesmo o meu quarto! – desabafa com satisfação.
Antes de fechar os olhos, jura ter escutado o coaxar do sapo Renato, do lado de fora da janela, junto ao choupo, a dar-lhe as boas-noites e a desejar-lhe um soninho descansado!

QUACH!!!!!!!!

domingo, 9 de dezembro de 2012

OS REIS CARACOL



6 de Dezembro de 2012

59 – OS REIS CARACOL

Os reis de Okatonga são dois grandes caracóis de olhos azuis cintilantes e magníficas conchas rosadas.
A prisão é um cubo de vidro que está montado no salão mesmo por baixo do sistema luminoso do farol.
Duas coroas douradas embelezam as reais cabeças, que sorriem satisfeitas.
O farol parou de girar quando o João Miguel pisou o ducentésimo vigésimo segundo degrau da grande escadaria de pedra.
Três gotas minúsculas de tinta encarnada mantiveram-se agarradas à colossal parede branca do farol. Foram as únicas marcas sobreviventes das listas vermelhas que o decoravam.
A rainha Alberta desce do trono de prata e aproxima-se da parede envidraçada por onde o menino os observa.
- Olá, João Miguel! Foi por muito pouco que Okatonga não desapareceu para sempre nos túneis do esquecimento. Três gotas de tinta da cor do sangue impediram que tal tivesse acontecido, e a tua coragem salvou-nos a todos. Temos uma dívida de gratidão eterna para contigo. Sabemos que o anão Zebedeu te acolheu no lugar secreto onde se esconde. Algumas peripécias da tua aventura foram-nos contadas por guerreiros de Dona Beatriz, a quem também tanto devemos. Mestre Tino não te conseguiu prender! Agora, que conseguiste ultrapassar o derradeiro desafio, a tempestade vai acalmar, a cidadela deixará de se enervar, e a floresta abrirá de novo o seu coração a todos os que a desejem visitar.
O menino pega no pau de giz e tenta desenhar, sem êxito, uma circunferência na parede de vidro. A abertura circular não se forma, e os reis continuam presos dentro da cela transparente.
As nuvens escuras dão lugar a um bonito céu azul de fim de tarde.
- E agora? – pergunta o João Miguel à rainha caracol – como vos posso ajudar a sair desta prisão?
O rei Alberto desce do trono de prata e avança até à parede de vidro por onde o menino os espreita.
- És um valente, meu rapaz! Um verdadeiro valente! A tua façanha é digna de um herói! O alquimista deve estar orgulhoso de te ter como seu aprendiz. Mas falta, ainda, um pequeno detalhe na história. Terás de te encontrar com Mestre Tino, para que ele te entregue as chaves do nosso cárcere. O buldogue ditador perdeu o jogo, e já deve estar lá em baixo à tua espera com as chaves entre os dentes. Vai ter com ele, mas não desças as escadas a correr, pois tens do teu lado todo o tempo do mundo. Faz como nós, avança devagar, mas chega sempre onde tens de chegar. Se assim o fizeres, serás o mais rápido de todos. É por esse motivo que nós somos os reis de Okatonga!
João Miguel fica contente com as palavras do rei Alberto. Vira-se, e desce as escadas sem grandes pressas. Delicia-se a contar, novamente, os duzentos e vinte e dois degraus feitos de pedra. A aventura desfila na sua memória enquanto faz a contagem. Ao pisar o último degrau, sai pela abertura circular desenhada na porta de madeira, que já ganhou uma fechadura e um bonito batente de bronze em forma de tartaruga.
Mestre Tino está à entrada do farol de olhos entristecidos, com um conjunto de chaves douradas agarrada com firmeza pelas fortes mandíbulas.
Ao longe, correndo pela longa alameda do jardim, chegam os ministros do buldogue, acompanhados pela terrível aranha Susete. Atrás deles, acabado de sair das águas do lago octogonal, caminha o velho Dom Raimundo a um ritmo moderado.
O grande cão ditador tem a caixa de escaravelhos fechada à sua frente, perto das patas.
Aparecem Aroma e Amora, e colocam-se ao lado direito de Tino, com a raposa Judite e o porco Baltasar. O gato Medina esgueira-se para o lado direito do cão, tal como o macaco Isidoro, o sargento-sapo, o coelho Belchior e a aranha Susete. Apenas falta Dom Raimundo, que já sobe as escadas de acesso à porta do farol onde todos se encontram reunidos. O velho jacaré escolhe o lado direito do buldogue, perto de Baltasar, para terminar a marcha, e é então que Belchior começa a cantar:

- Um, dois, três, quatro, os animais reunidos
Cinco, seis, sete, oito, estão muito arrependidos
Nove, dez, onze, doze, mil perdões te são devidos

Um, dois, três, quatro, és um grande campeão
Cinco, seis, sete, oito, venceste a competição
Nove, dez, onze, doze, cumpriste com a missão

Um, dois, três, quatro, com enorme valentia
Cinco, seis, sete, oito, fosse de noite ou de dia
Nove, dez, onze, doze, defendeste a dinastia

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

UMA GRANDE TEMPESTADE


2 de Dezembro de 2012

58 – UMA GRANDE TEMPESTADE

Tem de existir uma maneira para o João Miguel conseguir entrar no farol, nem sempre é pela porta principal que se tem acesso a um determinado lugar. Passagens secretas, truques especiais, mecanismos ocultos ou ferramentas exclusivas, são algumas das possibilidades que já passaram pela cabeça do menino, que está a sentir dificuldades para resolver o problema.
- Esta é a única porta que existe! Seria bom se aparecessem umas escadas do lado de fora para eu conseguir subir.
Assim que o João Miguel acaba de desabafar, e sem que se aperceba, o farol começa a rodar, bem devagar. Aos poucos, a sua velocidade aumenta até girar com a ligeireza de um carrossel colossal.
As listas encarnadas escorrem pelas paredes abaixo, numa tinta líquida espessa, como se fossem sangue de um vermelho muito vivo. Algumas gotas são projetadas no ar pela rotação do farol, causando uma insólita chuva avermelhada.
- Aqui em cima, João Miguel! Depressa! Tens de nos vir salvar! O farol começou a rodar! Tens de ser muito rápido a subir, ou OKATONGA DESAPARECERÁ PARA SEMPRE! Quando o farol perder a última gota de tinta vermelha, os túneis do esquecimento vão engolir a cidadela, a floresta, todos os oceanos de todos os mundos, e tudo o que já aconteceu, acontece e está por acontecer! O TEMPO É TEU INIMIGO; JOÃO MIGUEL, TENS DE O DOMINAR PARA CONSEGUIRES CUMPRIR A TUA MISSÃO!
O menino não se assusta com a chuva de tinta de sangue.
Está concentradíssimo em tentar descobrir uma outra entrada do farol.
- RAIOS! Onde será que se esconde uma outra porta, ou uma entrada diferente? Como vou fazer para entrar neste farol rodopiante? CLAAAAAAROOO! COMO POSSO TER SIDO TÃO DISTRAÍDO? Não vou perder nem mais um segundo!
Com uma rapidez nunca vista, o menino retira o pequeno pau de giz do interior da sacola de couro, corre até à porta de madeira e desenha-lhe uma perfeita circunferência branca que logo se ilumina. A abertura redonda dá-lhe um acesso fácil ao interior do grande farol.
No interior encontra-se uma escadaria em caracol, construída em pedra, em tudo idêntica à que usou para descer até casa do Zebedeu.
- Como posso ter sido tão distraído? Vou já subir, com todo o cuidado, pois o farol não para de rodopiar!

*

Os ministros de Mestre Tino começam a chegar à cidadela.
A raposa Judite vem à frente, seguida de perto pelo macaco Isidoro e pelos siameses Aroma e Amora. O porco Baltasar, o gato Medina e o coronel-sapo, que escapou ileso da queda, chegam logo a seguir.
O coelho Belchior aguarda-os junto ao portão de Okatonga, e dá-lhes a seguinte novidade:
- Calma, podem ficar descansados, não se preocupem! O miúdo está no jardim, perto do farol-prisão, mas nunca encontrará maneira de lá entrar. Jamais será capaz de salvar os reis do nosso reino!
Os ministros param a correria.
Judite está bastante preocupada. A notícia em nada a tranquiliza, e ela pergunta:
- Tens certeza absoluta do que acabas de afirmar, Belchior? Estou farta de ser enganada pela esperteza do miúdo. Ele é bem mais astuto e corajoso do que nós pensávamos.
O macaco Isidoro resolve falar:
- FARTO! ESTOU FARTO DESTA MACACADA! Temos de estar completamente seguros de que o rapazinho não sobe ao alto da prisão! E se isso acontecer, a culpa será toda tua, Belchior. NUNCA VI COELHO MAIS APALERMADO! Não sei o que me impede de te dar um valente puxão de orelhas!
Os siameses Aroma e Amora estão nervosos, e discutem um com o outro, culpando-se pela situação.
- A culpa disto estar a acontecer é toda tua, Aroma! É TODA TUA, SÓ TUA! Devias ter amordaçado os reis do nosso reino, como eu te disse!
O gato Aroma responde, ainda mais irritado:
- A culpa pode não ser do Belchior, mas minha também não é! A culpa disto estar a acontecer é toda tua, Amora! É TODA TUA, SÓ TUA! Devias ter amarrado os reis do nosso reino, como eu te disse!
O gato-guarda Medina olha para os siameses com ar reprovador, e também ele dá a sua opinião:
- Calem-se, parem lá com isso, não sejam ridículos! Se existe um culpado por esta situação, esse culpado sou eu! Se tivesse percebido que o Sarmento não estava do nosso lado, esse gato traidor nunca teria ajudado o rapaz a escapar da cidadela.
Uma trovoada ameaçadora aproxima-se da capital do reino. Os trovões escutam-se, ao longe, e o sargento-sapo avisa os restantes ministros:
- PAREM COM A DISCUSSÃO! Nada disto vai fazer com que o miúdo desista de tentar libertar os reis do nosso reino. Temos de unir os nossos esforços, e não passar o tempo a argumentar!
O porco Baltasar, que não gosta de dar razão a ninguém, abana a cabeça afirmativamente, grunhindo e concordando com as palavras do coronel:
- Ouviram o que disse o sapo? PAREM TODOS DE DISCUTIR! Se o João Miguel encontrou o jardim e o farol-prisão, como disse o Belchior, então ele é o adversário mais poderoso e esperto que o Mestre Tino alguma vez defrontou! E nós temos falhado ao tentar impedi-lo de cumprir a sua missão. Chegou a hora de unir forças, mas sem invejas nem egoísmos, caso contrário os reis serão libertados e o nosso futuro será tão negro como a tempestade que se aproxima.
Mestre Tino, que se manteve calado durante todo este tempo, escondido no meio do imenso temporal, levanta a voz para dar um ralhete aos seus ministros:
- UM BANDO DE INÚTEIS, É ISSO QUE VOCÊS SÃO! VOLTARAM A MENOSPREZAR UM ADVERSÁRIO! COMETERAM OS MESMOS ERROS DE SEMPRE, E O RAPAZ SOBE, A ESTA HORA, OS DEGRAUS DO FAROL!
O tom de voz do buldogue ditador ribomba como mil trovões.
Nuvens escuras como a noite tomam conta dos céus azuis de Okatonga.
A cidadela mergulha numa tempestade tremenda, que se estende até aos jardins do palácio real.
*

O farol roda, e a longa escada em caracol acompanha-o. A tarefa do menino torna-se ainda mais complicada.
João Miguel vai contando os degraus enquanto sobe.
Do lado de fora, as paredes estão quase brancas, pois a chuva acelerou o desaparecimento da tinta vermelha.
O menino corre, corre, corre pelas escadas acima o mais depressa que consegue.
A terrível tempestade faz com que as luzes do farol brilhem como nunca.
- MAJESTADES! ALTEZAS REAIS! REI ALBERTO, RAINHA ALBERTA, CONSEGUEM ESCUTAR-ME? VOSSAS REALEZAS ESTÃO BEM? – grita João Miguel com ansiedade.
A chuva cai com intensidade, e os relâmpagos da tormenta traçam desenhos luminosos que iluminam por completo o interior do farol.
A prisão onde os reis estão cativos treme com a energia provocada pelos trovões.
- MAJESTADES, ONDE ESTÃO? CONSEGUEM ESCUTAR-ME? – pergunta novamente o menino.
- SIM, AQUI EM CIMA! ESTAMOS AQUI! CONSEGUIMOS ESCUTAR-TE! Estás perto, muito perto. Deve faltar pouco para aqui chegares. – respondem os reis de Okatonga.
O João Miguel sobe a escadaria, sempre a contar:
- Duzentos e dezassete, duzentos e dezoito, duzentos e dezanove, duzentos e vinte, duzentos e vinte um e duzentos e vinte e dois! CHEGUEI! Até que enfim! Estou no topo do farol. Onde estão suas majestades?
No meio da sala octogonal de paredes envidraçadas, sentados em dois tronos feitos de prata, os reis Alberto e Alberta olham para o menino com satisfação.
- Olá! Estamos aqui à tua espera desde que a história começou! – diz a rainha Alberta.
- Olá! És um menino aventureiro e muito corajoso. Nunca duvidei que serias capaz de nos vir salvar. – diz o rei Alberto, sorrindo de satisfação.
O menino fica atónito ao conhecer, finalmente, os ilustres reis do reino de Okatonga.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

À PORTA DO FAROL



28 de Novembro de 2012

57 – À PORTA DO FAROL

A inesperada aparição de Belchior deixa o João Miguel inquieto.
Como terá o coelho conseguido chegar aqui tão depressa?
As tropas do coronel-sapo foram derrotadas com a ajuda das forças aéreas de Dona Beatriz, e os ministros encontram-se muito distantes. Estão afastados da capital nas profundezas da floresta de Okatonga, bem perto do grande lago negro de Dom Raimundo. Nem mesmo dando uso a toda a sua rapidez, o coelho conseguiria regressar à cidadela num tão curto espaço de tempo.
O menino está convencido que tudo não terá passado de uma simples miragem motivada pelo cansaço.
- Tenho de subir o farol para salvar os reis de Okatonga.
A extensa e larga avenida convida ao passeio. Converge desde o lago até um portão de ferro junto ao qual se ergue o imenso farol.
Os passeios ao longo da alameda são bastante largos e contêm dezenas de candeeiros e muitas árvores frondosas. Ao meio da via, intercaladas por meia centena de metros, encontram-se seis calçadas esguias, cada uma com quatro palmeiras altíssimas, transmitindo a bizarra sensação de que a avenida está sempre a crescer.
O menino anda pela via uma boa meia hora até conseguir chegar perto do farol. O rosto muda com o espanto causado pela imensa construção cilíndrica.
- ENA PÁ! O farol deve ter uns duzentos metros de altura! E esta estrutura de pedra que o suporta não terá menos de cinco. Os degraus que subo estão como novos, todos em laje, e esta porta de entrada é colossal, construída em madeira maciça. Reparo que não tem nenhum tipo de fechadura, nenhuma maçaneta, nem campainha nem qualquer abertura.
O edifício é colossal, e encontra-se tão limpo e tão radioso como se o tivessem acabado de pintar.
- QUE LINDO! É mesmo bonito! E este jardim de Okatonga não seria o mesmo sem este monumento espantoso. Pena é que o Mestre Tino se tenha lembrado de o transformar numa prisão. Mas que ideia sinistra a do buldogue ditador.
Sem mais demoras, o menino bate na porta e empurra-a, tentando abri-la com estes gestos simples.
A entrada permanece fechada.
- Que porta invulgar, sem fechadura, sem campainha nem sino para tocar! Mestre Tino deve ter inventado este sistema de clausura para trancar para sempre os reis de Okatonga. Mas que mente tão diabólica.
Do alto da construção, as vozes continuam a lançar aos ventos apelos impacientes:
- Aqui em cima! É aqui em cima, no alto do farol, que terás de nos vir salvar!
O menino olha para o topo da estrutura e pensa em voz alta:
- É impossível chegar até lá acima pelo lado de fora. Que bom seria se eu fosse uma coruja como Beatriz, e tivesse asas para voar. Seria fácil e rápido. Assim, não me resta outra alternativa que não seja a de tentar abrir a porta. Mas como fazê-lo se não existe nenhuma fechadura ou ranhura?

terça-feira, 27 de novembro de 2012

O MAIS BELO DE TODOS OS JARDINS



28 de Novembro de 2012

56 – O MAIS BELO DE TODOS OS JARDINS

O sol, acabado de nascer, transforma o jardim num imenso arco-íris. Flores de todas as cores embelezam os relvados e os canteiros, que se encontram espalhados um pouco por toda a parte.
São vinte e quatro as estátuas que circundam o lago octogonal. Os passeios que o rodeiam são largos e terminam em dois degraus que descem até um imenso relvado que se estende até onde a vista alcança.
O jardim não tem muros a cercá-lo, é imenso e, para qualquer lado que se olhe, tudo se encontra composto, organizado e muito harmonioso. Não existe uma ponta de relva mais alta do que outra, as palmeiras são quase todas da mesma altura, os candeeiros estão espaçados os mesmos metros entre si e as árvores e sebes estão lindamente aparadas.
Os mármores do pavimento junto ao lago brilham como um espelho. A água é tão límpida, tão cristalina, que os peixes dourados parecem nadar no vazio. Os elegantes repuxos espiralados soam compassados e caem, segundo a segundo, na água do lago, permitindo calcular o tempo com facilidade. O menino conta sessenta mergulhos de sessenta repuxos e sorri de contentamento.
A água está tépida, e os peixes dançam e brilham como estrelas ao luar.
- Que jardim maravilhoso! Nem vale a pena dizer que é o mais bonito jardim que alguma vez visitei. Tudo o que existe em Okatonga não para de me surpreender. E pensar que aqui por baixo existem subterrâneos escuros, imundos e mal-cheirosos.
João Miguel descalça as botas negras para retirar o resto das águas sujas que lhe causam desconforto. O pijama, o cabelo e o corpo ainda estão todos molhados.
- Que bom seria ter uma toalha para me enxugar. Ainda me vou constipar! A avó Dulce anda sempre atrás de mim, de chinelos na mão. Não gosta nada que eu ande descalço pela casa ou me esqueça de secar o cabelo depois do banho. Está sempre a dizer que me constipo, e que a culpa é toda minha se isso acontecer. Ai se ela me visse agora neste estado, o que teria ela para me dizer?
O menino pendura a camisa do pijama num pequeno arbusto, virado para o sol, juntamente com as botas militares já desatadas. Senta-se na relva curta, que de tão bem aparada, se assemelha a um gigantesco tampo de mesa de bilhar.
Está calor e em breve tudo estará seco para que a aventura possa continuar.
- O farol é imponente e muito bonito. Tem sete riscas brancas e cinco vermelhas, e as luzes piscam em tons de verde e azul, quase tão intensas como o sol da manhã.
João Miguel resolve levantar-se e dar pequenos passos na direção do farol de onde chegam, com clareza, as mesmas duas vozes de há pouco:
- Aqui, estamos aqui, João Miguel! É no alto do farol que terás de nos vir salvar! Aqui, estamos aqui em cima, João Miguel! É no alto deste farol que terás de nos vir salvar!
Já não resta nenhuma dúvida. Foi ali, bem no alto do farol, que o malvado Mestre Tino prendeu os reis de Okatonga. O buldogue tirano enviou os ministros Aroma e Amora pelos túneis do esquecimento até estes jardins escondidos no interior do palácio da cidadela. Encarceraram os reis Alberto e Alberta no alto do edifício para que nunca mais pudessem ser resgatados.

- Um, dois, três, quatro, semeada no jardim
Cinco, seis, sete, oito, uma flor carmesim
Nove, dez, onze, doze, com perfume de jasmim

Um, dois, três, quatro, semeada no quintal
Cinco, seis, sete, oito, uma flor do olival
Nove, dez, onze, doze, com perfume outonal

Um, dois, três, quatro, semeada na planura
Cinco, seis, sete, oito, uma flor cor de doçura
Nove, dez, onze, doze, com perfume de aventura

Um, dois, três, quatro, semeadas pelo campo
Cinco, seis, sete, oito, as flores cor de sarampo
Nove, dez, onze, doze, brilham como o pirilampo

Um, dois, três, quatro, semeada no jardim
Cinco, seis, sete, oito, esta história, para mim
Nove, dez, onze, doze, nunca mais terá um fim

Vindo, sabe-se lá de onde, o saltitante Belchior pega nas botas e na camisa de pijama do menino e desata a fugir com as peças do vestuário. O João Miguel fica sem reação, por instantes, até que resolve perseguir o animal cinzento, correndo atrás dele como uma flecha.
- Se pensas que vais escapar, estás muito enganado, coelho maluco! – grita o rapaz muito exaltado.

Um, dois, três, quatro, esta bela brincadeira
Cinco, seis, sete, oito, torna a história verdadeira
Nove, dez, onze, doze, vai durar a vida inteira

Um, dois, três, quatro, não me tentes apanhar
Cinco, seis, sete, oito, vou correr até ao mar
Nove, dez, onze, doze, e nas ondas mergulhar

E do alto do farol as vozes repetem, aflitas, o mesmo apelo:
- Aqui, estamos aqui, João Miguel, no alto deste farol! Terás de o subir para nos salvar!
Belchior volta-se para o menino e deita-lhe a língua de fora. Mostra-lhe as botas e a camisa do pijama, agitando-as com as patas bem acima da sua cabeça.

Um, dois, três, quatro, não me consegues chegar
Cinco, seis, sete, oito, sou ligeiro a saltar
Nove, dez, onze, doze, deste para outro lugar

E sem se saber como, o coelho cinzento desaparece de forma tão misteriosa como aparecera. As botas e o pijama caem no meio da relva, no exato lugar onde o ministro saltava com exagero.
O menino resgata as peças de vestuário que ficaram secas com tanta agitação.
Calça-se e veste-se com desembaraço, expressando o seu desagrado com a estranha situação:
- Mas que coelho mais apalermado! Como será que ele aqui chegou? Deve ter usado uma poção de Zebedeu, e isso não é bom sinal. Se calhar, sou só eu a imaginar estas coisas devido ao cansaço provocado pela aventura. Talvez tenha sido uma simples ilusão, ou talvez uma miragem, mas não posso negar que vi e escutei o coelho Belchior! E agora, TENHO DE CUMPRIR COM A MINHA MISSÃO! Tenho de salvar os reis de Okatonga, tenho de salvar Alberto e Alberta antes que algum pesadelo possa alterar, por completo, o rumo da história.
O sol já vai alto, o jardim continua colorido, e o farol aguarda com ansiedade a chegada do ilustre viajante.