quarta-feira, 31 de outubro de 2012

SENHORA BEATRIZ



31 de Outubro de 2012

50 – SENHORA BEATRIZ

Milhares de pássaros em formação transformam o céu de Okatonga num cenário vibrante e cheio de vida. O barulho que fazem é tremendo, é idêntico a um furacão embrutecido capaz de arrancar as árvores pela raiz e de as soprar pelos ares.
- Não podemos parar, João Miguel! As tropas do coronel-sapo e os escaravelhos devem estar quase a alcançar-nos. Escuto os passos acelerados de Dona Suzete que deve estar mortinha para se vingar. – exclama Esmeralda sempre a correr.
Renato fica de todas as cores ao escutar de novo este nome.
- CHEGA ESMERALDA! ESTOU FARTO! Não quero mais ouvir falar da aranha branca. NÃO QUERO! NÃO QUERO! NÃO QUERO! Fico com a cabeça a andar à roda sempre que me lembro dela e daquilo que me fez. Se depender de mim, essa bruxa de oito patas nunca nos apanhará. – diz o sapo numa grande aflição.
Desde que o João Miguel saiu do laboratório de Zebedeu, a sua viagem ficou muito atribulada. Existem forças estranhas e bem poderosas que desejam impedi-lo de cumprir a sua missão.
Os amigos ajudam-no, como podem, nesta fuga pelo meio da floresta. O menino tem conseguido escapar aos perseguidores, mas agora as forças ficaram muito desequilibradas.
- Esmeralda, Renato, e se eu me entregasse e me deixasse prender? Assim acabava a correria de uma vez por todas. Eu conheço Mestre Tino, já comi à sua mesa, já estive sentado ao seu lado e não acho que ele seja assim tão assustador. Então, não acham que é uma boa ideia? – desabafa o João Miguel com preocupação.
Esmeralda e Renato param de imediato.
O menino também está parado na floresta, com a roupa toda encharcada e de cabelos molhados a olha para eles.
A menina e o sapo berram juntos e a uma só voz:
- É A IDEIA MAIS TOLA QUE PODIAS TER TIDO!
Esmeralda continua a falar, com os nervos quase em franja:
- Não podes desistir! Não te podes entregar dessa maneira, João Miguel! Não é só a tua vida que está em jogo. Não são apenas as vidas dos nossos reis Alberto e Alberta que estão em perigo. Se te deixares apanhar, o Mestre Tino atirar-te-á para o fundo do poço do esquecimento e Okatonga deixará de existir. O nosso mundo desaparecerá para sempre, tu desaparecerás e ninguém te recordará. Será como se nunca tivesses existido.
O menino recupera o fôlego. Esta paragem deu-lhe algum tempo para pensar. O poço do esquecimento deve ser o local de entrada e de saída dos labirínticos túneis do esquecimento, reino secreto da toupeira Anastácia.
Okatonga é, de facto, um lugar misterioso, e a última coisa que deseja é causar o desaparecimento deste reino. Quando regressar a casa, João Miguel faz questão de contar todos os detalhes desta grande aventura à mãe e à avó Dulce. Tem a certeza absoluta que elas vão adorar. A mãe vai ficar espantada quando souber que Zebedeu existe e é igualzinho à história que ela lhe começou a contar. Este é um motivo mais do que suficiente para dar razão a Esmeralda e ao sapo Renato.
- É A IDEIA MAIS TOLA QUE EU PODIA TER TIDO! Como é que fui capaz de pensar uma coisa destas? – grita o menino.
- Vá lá, não se fala mais no assunto! – diz Esmeralda estendendo-lhe a mão. – Temos de continuar a correr para alcançar o coração da floresta. Ninguém o conhece tão bem como eu.
Quando se preparam para recomeçar com a louca correria, uma coruja enorme de porte imperial, rosto branco, redondo, e de olhos muito negros, fala do alto da sua morada:
- Não me parece ser boa ideia correr nessa direção. Vocês estavam tão entretidos com a conversa que nem deram conta da minha presença.
Esmeralda reconhece a dona desta voz rouca e sábia e olha de imediato para o alto da árvore:
- Senhora Dona Beatriz! Que grande honra! – exclama a menina ensaiando uma vénia.
O sapo Renato está tão admirado que as palavras saem-lhe da boca com dificuldade:
- Se…Senho…Senhora Do… Senhora Dona Bea… Beatriz! O me… O meu no… O meu nome é Re… Rena… Renato. Sou um sim… sou um simples sa… um simples sapo que se sente muito honrado em poder cumprimentá-la!
A coruja tem novidades desanimadoras para lhes dar, mas antes de as transmitir, voa até ao chão e aterra mesmo em frente ao menino que fica boquiaberto com a beleza e majestade da coruja Beatriz.
- Senhora Dona Beatriz, boa-tarde. Chamo-me João Miguel e estes são os meus amigos Esmeralda e Renato.
A coruja sacode as asas por duas vezes antes de começar a discursar:
- Sei muito bem quem vocês são. Tu não podes continuar a corrida pois todos os caminhos estão cercados. Os escaravelhos espalharam-se em círculo e estão a poucos minutos daqui. A aranha Suzete construiu armadilhas com fios muito resistentes e cristalinos. Mesmo que conseguisses passar pelos escaravelhos, serias apanhado numa dessas teias impercetíveis. E se, mesmo assim, ainda as conseguisses evitar, fica a saber que a raposa Judite, o porco Baltasar e os gémeos Aroma e Amora acabaram de se juntar ao Medina, ao Isidoro, ao coelho Belchior e às tropas do coronel-sapo. Como vês, a tua fuga tornou-se mais difícil. A situação piorou e o tempo passou a ser teu inimigo.
Tudo se complica. Com os caminhos cortados, nada mais resta ao menino do que esperar pela sua mais que provável captura. Mas Esmeralda não desiste. A menina sabe que ainda resta uma hipótese para o João Miguel conseguir escapar. A salvação encontra-se ali mesmo à frente dele.
O menino não reage. A coruja é tão bonita que até as más notícias lhe soaram bem. Esmeralda dá-lhe dois safanões para o fazer sair desta espécie de transe.
- João Miguel! Então? Vá lá, acorda! Tens de pedir à Dona Beatriz para te levar depressa para fora daqui. Estás a ouvir-me, João Miguel? Pede ajuda à coruja das torres, ela pode carregar contigo às costas e salvar-te desta grande complicação.
Dona Beatriz reage primeiro, com ar sorridente:
- Perdeste a língua, miúdo? Será que tens medo das alturas?
A figura imponente da coruja impressionou-o imenso, mas o menino recompõe-se e pergunta:
- Senhora Beatriz, será que me pode ajudar a sair desta terrível situação
Os milhares de pássaros em formação continuam a fazer um barulho tremendo, idêntico a um furacão embrutecido capaz de arrancar as árvores pela raiz e de as soprar pelos ares.
O menino está com a respiração suspensa a aguardar a resposta de Beatriz.
Renato e Esmeralda estão com a respiração suspensa a aguardar a resposta de Beatriz.
Nunca, como agora, um pequeno instante lhes pareceu tão imensamente preguiçoso.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

TOCA A MARCHAR



25 de Outubro de 2012

49 – TOCA A MARCHAR

As tropas estão todas desalinhadas. Dona Suzete segue atrás dos escaravelhos e fareja os locais por onde os três amigos acabaram de passar. A aranha é meticulosa e não aprecia desorganização.
O coronel-sapo não entende como foi possível o João Miguel e o Renato terem escapado dos dentes afiados de Dom Raimundo. Tinha estudado a estratégia ao pormenor, tudo preparado na perfeição para os capturar, mas eles conseguiram fugir da boca do jacaré num golpe de sorte.
O macaco Isidoro dá saltos e piruetas, berra e esbraceja com excitação, rodopia e bate com os punhos no chão, assustando o Medina. O gato-guarda fica logo com o pelo eriçado. Está nervoso com a situação e põe as unhas de fora, com vontade de as usar. Segura na lança afiada, aponta-a em frente e segue disparado atrás da aranha branca e dos escaravelhos.
O coelho Belchior vira-se para o coronel-sapo e começa a cantar:

Um, dois, três, quatro, o exército enganado
Cinco, seis, sete, oito, não pode ficar parado
Nove, dez, onze, doze, vai seguir para aquele lado

Um, dois, três, quatro, as ordens do Mestre Tino
Cinco, seis, sete, oito, são para prender o menino
Nove, dez, onze, doze, cumpra-se esse destino

Mande pular os soldados
Faça calar o ministro
Os sapos estão irritados
Com o macaco sinistro

Só um sapo caçador
Sabe como é importante
Para o Tino ditador
Apanhar o Visitante

O Medina foi-se embora
A aranha já partiu
É chegada a nossa hora
De marchar com muito brio

Para o menino prender
Vamos saltar na floresta
Sabemos o que fazer
Vai ser uma grande festa

Okatonga transforma-se.
A floresta pacífica é invadida por centenas de escaravelhos velozes que avançam, às cegas, por entre a vegetação. Dona Susete segue-os numa solta correria, bisbilhotando os trilhos, olhando para todos os recantos. A aranha branca marca zonas especiais com teias finas, e prepara armadilhas com teias mais resistentes.
O Medina corre muito depressa, de lança erguida, como se o mundo fosse acabar. Afasta e corta a vegetação que lhe surge à frente, salta de galho em galho, de tronco em tronco e de raiz em raiz, numa algazarra descabida.
Os soldados-sapo marcham e pulam pela floresta, como se estivessem numa festa, fazendo um enorme alarido. Deixam um rasto de destruição atrás deles que ainda fica pior com as manobras desenfreadas e quase alucinadas do Isidoro, que não se consegue acalmar.
Belchior e o coronel-sapo marcham com as tropas, fazendo um ar muito compenetrado.
O ministro distribui pontapés e socos em tudo o que encontra no caminho, e faz tudo isso lançando berros estridentes. Os pássaros levantam voo à sua passagem e o céu cobre-se com bandos de inúmeras espécies.
Em Okatonga nunca tinha acontecido nada assim.

- OLHEM PARA O CÉU! Estão a ver? São milhares e milhares de pássaros a juntarem-se aos bandos! O que será que está a acontecer? – pergunta João Miguel muito admirado.
E os olhos vermelhos do sapo Renato voltam a faiscar como quando estavam dentro da boca de Dom Raimundo.
- AI MINHA RICA MÃEZINHA!

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

NEVOEIRO NEGRO



24 de Outubro de 2012

48 – NEVOEIRO NEGRO

As nuvens que João Miguel observa juntam-se para tapar o céu azul, transformando-o num cinzento muito carregado.
Recomeça a chover.
Assim que o lago negro recebe as primeiras gotas, forma-se uma neblina escura em toda a sua extensão. O lago ganha formas estranhas e movimenta-se numa dança assustadora. Quanto mais chove, mais denso fica o nevoeiro que cresce e avança até adquirir uma dimensão extraordinária.
João Miguel e Renato observam esta imensa nuvem negra, boquiabertos, e mal dão conta dos puxões que os arrastam para outra posição.
Não veem ninguém.
A enseada está escura e deserta, mas alguém os continua a arrastar pelo meio do nevoeiro que acaba de se formar.
O menino e o sapo demoram a entender o que se está a passar.
- Venham, não podemos perder nem mais um segundo! As tropas do coronel-sapo estão quase a chegar. Estavam à vossa espera na margem mais a norte, viram-vos alcançar a enseada e dirigem-se para aqui! – exclama Esmeralda num tom de voz harmonioso.
- ESMERALDA! - grita João Miguel com alegria. – És mesmo tu? Que boa surpresa! Onde estás, que não te consigo ver?
A menina continua a falar sem levantar a voz:
- Eu não estou invisível, a culpa é deste nevoeiro negro que acabou de nos cobrir. Enquanto não parar de chover, e não sairmos das margens do lago, ele continuará a crescer. A Dona Suzete, o gato Medina e o coelho Belchior acompanharam as tropas do coronel-sapo. Vieram escoltados por uma centena de escaravelhos e mais o macaco Isidoro. Este nevoeiro negro é uma manobra malvada de Dom Raimundo, que deseja assustar-te e atrasar-te ainda mais. Eles querem prender-te, João Miguel, pois essa foi a ordem dada por Mestre Tino, o buldogue tirano que agora nos governa.
O nevoeiro dificulta imenso a visibilidade. O menino não vê ninguém. De repente, os olhos faiscantes do batráquio acendem-se numa luz vermelha tão intensa como as chamas de um incêndio. João Miguel descobre os dois amigos mesmo ali ao seu lado.
- ESMERALDA! Que bom é voltar a ver-te! A floresta de Okatonga fica bem mais simpática na tua presença.
A menina não consegue evitar um sorriso, mas o risco é grande.
- Tens de sair daqui, João Miguel, e bem depressa! Os olhos luminosos do Renato vão ajudar-nos a encontrar o caminho na escuridão. Tens de regressar à cidadela, e tens de ser muito cauteloso. Não podes cair nas armadilhas dos teus perseguidores.
O Renato nem fala, tal é o seu estado de nervos. Só pensa na Dona Suzete. A aranha está tão perto, que o corpo treme e sua a pele fica da cor do nevoeiro. O bicho não se distingue da neblina só a luz brilhante dos seus olhos indica que ele ali se encontra, mais a sua respiração ofegante.
Os três avançam pela floresta, seguindo as orientações de Esmeralda. Ela conhece-a muito bem. É aqui que mora e é aqui que passa a maior parte do tempo. Esmeralda vive em Okatonga desde que nasceu. Certo dia, alguém lhe contou que um menino corajoso e aventureiro a iria visitar, vindo de um mundo desconhecido e diferente. Não se lembra quem lhe contou, e nem sabe se não terá sonhado essa lenda. O certo é que, ao ver o João Miguel pela primeira vez, descalço e em pijama, com uma bonita caixa branca de cartão nas mãos, soube que ele era o menino da história. Pouco depois, o anão Zebedeu informou-a que ela tinha de o ajudar, pois disso dependia a própria existência de Okatonga. É Esmeralda quem se encarrega de recolher raízes, pétalas, flores, folhas, cascas, plantas, bagas e outros produtos importantes para o anão alquimista. Ele paga-lhe o serviço com as suas poções. Esmeralda esconde-as, algures pela floresta, em locais que só ela sabe encontrar.
O futuro de Esmeralda, da floresta, da cidadela fortificada e de todos os seus habitantes, o futuro do alquimista e dos reis Alberto e Alberta, pertencem a este visitante franzino de quem poucos ouviram falar.
A menina gostava de conhecer o mundo de João Miguel, mas não se atreve a perguntar-lhe como é a sua terra. O mais importante, agora, é ajudá-lo a cumprir a sua missão.
Esmeralda conta-lhe o que se passou enquanto o menino visitou Zebedeu:
- Fiquei à tua espera, junto ao grande carvalho centenário, e percebi que algo de estranho se estava a passar. Avistei o gato Sarmento a fugir do interior da árvore, com os olhos verdes a brilhar. Não era suposto ele andar por ali. Depois dele saíram de lá muitos morcegos a voar desnorteados, e tive receio que tu tivesses voltado para trás sem conhecer o anão alquimista. Estes eventos chamaram-me a atenção. Desci e espreitei para dentro do tronco oco. Não te vi, mas escutei o ruído da porta de casa do Zebedeu a ecoar das profundezas. Fiquei descansada e aguardei. – diz a menina enquanto avançam pela trilha iluminada a vermelho. – Passaram algumas horas e escutei barulhos de passos que vinham debaixo do chão, bem fundo, junto às raízes mais antigas, juntamente com um rumor de vozes, como se conversas estivessem a acontecer. Eram quase impercetíveis. Foi por essa altura que desceu do céu um carrossel musical, muito bonito e luminoso, cheio de animais coloridos. Compreendi que tudo não passava de um sonho. Eu adormeci junto à grande árvore, e só acordei com o estardalhaço provocado pelos pinotes do coelho Belchior que saltava ali por perto. Isto só podia significar que o coelho andava de novo à tua procura! Levantei-me, segui-o sem ele dar conta, como é meu hábito, e foi assim que acabei por vos encontrar.
João Miguel escuta Esmeralda com toda a atenção. E a menina continua:
- Depois de vocês mergulharem no lago, o coelho correu esbaforido. Foi ter com as tropas do coronel-sapo, que já estavam formadas à vossa espera na outra margem do lago. Um estranho acaso fez com que vocês acabassem por regressar à superfície bem afastados do local onde eles vos aguardavam, e nadassem até à enseada com rapidez. O resto da história já tu conheces.

A chuva diminui.
Já não está tão escuro.
A neblina começa a dissipar-se.
Escutam-se ruídos muito preocupantes.
A pele preta do sapo Renato pinta-se de verde.
Os três amigos desatam a correr a toda a velocidade.
Os escaravelhos batedores do exército estão cada vez mais próximos.

Os olhos vermelhos do sapo Renato voltam a faiscar como quando estavam dentro da boca de Dom Raimundo.
- AI MINHA RICA MÃEZINHA!

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

DÚVIDAS DE CORAGEM



22 de Outubro de 2012

47 – DÚVIDAS DE CORAGEM

O fundo do lago ganha cores sombrias à medida que Renato e João Miguel nadam para longe. Dom Raimundo deu ordens para que os polvos e os chocos pintassem as águas de negro. O grande jacaré não quer ser visto por ninguém. Acaba de ser enganado por uma criança e por um sapo minúsculo, e não quer que ninguém o saiba.
- Temos de regressar a Okatonga, João Miguel. Vamos nadar depressa para bem longe daqui antes que o jacaré resolva vir atrás de nós.
O menino nada enquanto pensa em libertar os reis Alberto e Alberta. A sua valentia pode não ser suficiente para cumprir tão importante missão.
- Achas que vou ser capaz de libertar os reis do vosso reino, Renato? – pergunta o menino com inquietude. – Estou a ter dificuldades em respirar. Temos de regressar rapidamente à superfície. A poção deve estar a deixar de fazer efeito.
O sapo faz um derradeiro esforço e nada como nunca. O lago está escuro. As suas águas estão a ficar turvas, muito negras, pois os cefalópodes cumprem à risca as ordens de Dom Raimundo.
- Estou a ficar cansado, Renato. Ainda faltará muito para chegarmos à superfície? – pergunta João Miguel com os olhos quase fechados.
O sapo agarra a mão direita do menino e dá grandes impulsos com as potentes patas para chegarem à tona de água. Assim que o rapaz coloca a cabeça de fora do lago, enche os pulmões com uma grande golfada de ar puro. Sente, de imediato, um grande alívio.
Renato conseguiu trazê-lo até aqui, são e salvo.
O sapo conseguiu atravessar o coração do grande bosque chuvoso, e sair de uma das zonas mais inóspitas e esquecidas de Okatonga, por onde só Belchior se aventura.
O sapo conseguiu libertar João Miguel da boca sombria do velho jacaré e conseguiu trazê-lo até aqui, são e salvo.
As águas límpidas do lago estão todas negras, carregadas de uma tinta escura lançada pelos milhares de polvos e chocos, vassalos de Dom Raimundo.
- Vem, João Miguel, só mais um esforço! Temos de chegar aquela pequena enseada antes que a tinta espessa nos dificulte os movimentos.
As últimas braçadas são dadas com grande dificuldade e sofrimento. A fuga debaixo de água foi fatigante e os últimos metros até chegada a terra firme custam imenso a passar.
Renato chega primeiro, o João Miguel logo a seguir.
Exausto, o menino deixa-se cair de costas. Fica de braços e pernas abertos a contemplar o céu.
O grande lago é uma imensa mancha de águas negras que se estende até onde a vista alcança. Renato segura na mala do menino, levanta-lhe a cabeça com delicadeza, e coloca-a debaixo da nuca a servir-lhe de almofada.
- Chegámos, João Maria. Foi por um triz que conseguimos nadar até à costa. Descansa um pouco, recupera as tuas forças que ainda temos um longo caminho a percorrer.
O menino olha para o céu, espera por uma resposta escrita nas nuvens. Gostava que elas lhe pudessem enviar uma mensagem, gostava que lhe dissessem como deve proceder para conseguir libertar os reis de Okatonga.
- Renato, o que devo fazer para libertar os reis Alberto e Alberta? És capaz de me dizer, Renato, o que vou fazer para cumprir com êxito a minha missão.
O sapo colocou-se ao lado do menino e responde:
- Tens de acreditar em ti, como todos nós acreditamos! Okatonga depende de ti para continuar a existir. Tu és o menino mais valente de todo o mundo, e agora que já és aprendiz de alquimista, nada nem ninguém te poderá vencer. A única coisa que tens de fazer é acreditar em ti, acreditar nessa força invisível que te pertence. Recorda o lugar onde a arquivaste, relembra as outras vezes em que lhe deste uso, mesmo que julgues nunca a teres utilizado. Só tu podes responder à pergunta que acabas de colocar.
- Tinhas razão Renato, o Belchior não é de confiança. Em Okatonga, há muitas coisas que não são aquilo que parecem. Temos de sair daqui. Se o coelho é um espião, mentiu-nos quando disse que Dona Suzete foi derrotada e ficou com uma pata ferida. Ela deve estar por perto, não sei porquê, mas acho que a grande aranha branca deve estar quase a encontrar-nos.
Os olhos vermelhos do sapo Renato voltam a faiscar como quando estavam dentro da boca de Dom Raimundo.
- AI MINHA RICA MÃEZINHA!

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

ESPIRRO LIBERTADOR




18 de Outubro de 2012

46 – ESPIRRO LIBERTADOR

Dom Raimundo nada pelo fundo do lago, sem pressas, formando longos esses com o corpo serpenteante.
As notícias da cidadela também aqui chegaram.
O velho jacaré não gostou nada de saber que Mestre Tino e os seus ministros tenham encarcerado os reis Alberto e Alberta nos calabouços do palácio. Se não estivesse tão velho e cansado, já teria ido até Okatonga para resolver a situação. A sua idade avançada não lhe permite partir nessa aventura, mas a vontade é grande e continua a espicaçá-lo.
Enquanto pensa, nada tranquilo a transportar o menino e o Renato dentro da sua boca enorme.
O sapo treme, treme muito, todo enrolado como uma pequena bola de borracha de um verde sumido.
- Ai, ai, João Miguel! O que será que nos irá acontecer? Ai minha mãezinha, estou com tanto, tanto medo! Preferia voltar a estar amarrado à árvore, preso pela teia da Dona Suzete. Não sei como consegues estar assim tão calmo. Tu és valente, João Miguel, mas desta vez acho que estamos condenados. O jacaré vai acabar por nos engolir! Ai de mim, ai de nós! Estamos fritos!
O menino tenta arranjar explicação para um estranho fenómeno. Ele consegue escutar as vozes de Renato e Dom Raimundo, apesar de estarem dentro de água a uma profundidade considerável. As vozes são idênticas aos sons que fazem as baleias, são iguais às que viu num documentário acerca da vida animal que passou na televisão.
- Ó Renato, não estejas assim tão nervoso. Se Dom Raimundo nos quisesse comer, com certeza já o teria feito. Se calhar, a maçã que comeste estava estragada.
O sapo dá razão ao João Miguel. Se o jacaré os desejasse comer, a esta hora estariam dentro do estômago do bicharoco.
- Vem cá, vem até aqui apreciar a paisagem. É como visitar um oceanário mas muito melhor pois estamos dentro dele a viajar. Repara nas pedras do lago. São maravilhosas, cheias de cores como os corais. E os peixes são muito bonitos. São pequenos, brilhantes e curiosos. Olham para nós com tanta admiração como olhamos para eles. São tão engraçados!
Renato fica menos nervoso e ganha um tom de verde mais vistoso.
Já não é uma bola, os braços e as pernas mexem-se e ele lá acaba por se arrastar para perto do menino.
Receoso, decide espreitar por entre dois dentes afiados de Dom Raimundo.
- HUAAUUU! Que maravilha! Tantos peixes, tantas cores, que água tão cristalina, que pedras espetaculares! Nunca estive num lago assim tão vibrante. Apenas conheço poças, pântanos, charcos lamacentos de águas estagnadas e lodosas, riachos apertados e rios desinteressantes. Isto aqui é uma outra Okatonga! Que lago assombroso! Na cidadela nunca ouvimos falar da sua existência.
O grande jacaré esboçou um ligeiro sorriso. Sem dizer qualquer palavra, está a conseguir contar a sua história.
Dom Raimundo transformou o grande lago num imenso império subaquático. Com grande sabedoria e coragem, impôs a sua visão e vontade a todos os habitantes, tendo ganho o seu respeito e consideração.
Ao início, a tarefa não foi fácil. Outros jacarés tentaram destruir tudo o que ele ia modificando.
Os primeiros anos foram marcados por muitas batalhas entre Dom Raimundo e os seus rivais. A mais famosa de todas foi a célebre luta que travou com o malvado senhor Proença, um jacaré que tinha o corpo marcado com mais de duzentas cicatrizes que herdara em outras tantas disputas. Ninguém assistiu ao combate, ninguém sabe ao certo o que aconteceu. Após duas horas de confronto, Dom Raimundo regressou vitorioso e foi nomeado governador supremo destas águas profundas. Quanto ao senhor Proença, desapareceu para sempre e nunca mais foi avistado.
Após esse dia nenhum jacaré se atreveu a desrespeitá-lo ou ousou ameaçá-lo.
- Então? Estão a gostar do passeio? Encontraram-me com facilidade, seus sortudos! Eu sei quem vocês são. As notícias de Okatonga chegam aqui mais depressa do que à casa de Zebedeu. O gato Sarmento já me conhece há mais anos do que aqueles que trabalha para o anão. Antes de lhe ir contar as novidades, fala primeiro comigo. Bebemos umas cervejas enquanto conversamos, jogamos umas partidas de damas e fumamos um charuto. Só depois é que abala até à morada do alquimista. Por isso sei que Okatonga está virada do avesso, e sei que tu tens de salvar os reis de nosso reino! És tu que terás de salvar os reis do nosso reino, porque eu já me sinto velho e cansado.
Renato fica branco como a cal das paredes.
Os olhos vermelhos faíscam e iluminam o interior da boca de Dom Raimundo.
A ser verdade o que acaba de dizer, o Sarmento conhece este lago e o seu governador. O malandro do felino guardou segredo acerca deste lugar durante anos. Nunca disse nada a ninguém.
Os sapos, afinal, tinham boas razões para suspeitar dos porteiros da cidadela de Okatonga. Oxalá o gato não tenha dado com a língua nos dentes, oxalá não tenha dito alguma coisa ao Medina. Os dois nunca se deram lá muito bem, mas são uns grandes aldrabões. O Renato sabe que não são gatos de confiança. Se o Sarmento falou, Mestre Tino e os ministros já sabem da existência do lago e devem ter enviado as suas tropas.
- Estou muito preocupado, João Miguel, mesmo muito preocupado!
O menino olha para dentro da boca iluminada do jacaré e fica espantado com a cara que o batráquio está a fazer.
- O que foi, Renato? O que é que te preocupa agora? Ainda tens medo que Dom Raimundo nos possa comer?
O corpo do sapo fica das cores do arco-íris e os seus olhos faíscam como nunca.
- Não, é pior, muito pior! Tenho a certeza absoluta que Dom Raimundo nos está a levar para uma margem do lago onde estão tropas de Mestre Tino para nos prender.
O João Miguel não quer acreditar nas palavras de Renato.
Será que o amigo ficou doidinho de vez?
- O que é que tu estás para aí a dizer? Mas que ideia a tua, Renato! Só te passam tragédias pela cabeça.
Renato fica com vontade de explodir, e desata a berrar dentro da boca do velho jacaré.
- AI TU ACHAS QUE EU ESTOU A BRINCAR, ACHAS? ISTO É TUDO UM PLANO BEM ESTUDADO PELO ESPIÃO DE MESTRE TINO! FOI BELCHIOR QUEM NOS ENSINOU O CAMINHO E NOS TROUXE ATÉ AQUI. FOI ELE QUEM TE LEVOU ATÉ À CIDADELA E TE ENFIOU NA CARRUAGEM PARA DEPOIS TE PRENDEREM. SERÁ QUE AINDA NÃO PERCEBESTE, JOÃO MIGUEL? É UM PLANO ENGENHOSO PARA TE PRENDEREM! É ISSO QUE ELES PRETENDEM! TEMOS DE SAIR DAQUI O QUANTO ANTES, TEMOS DE FUGIR O MAIS RÁPIDO QUE CONSEGUIRMOS!
O menino reage por instinto às palavras chocantes do sapo Renato. Abre a sacola e espalha pimenta Habanero para cima da língua do velho jacaré, que logo solta um espirro tremendo.
- ATCHIIIIIMMMMMMMMMMMM………….
O sapo e o menino são cuspidos da boca de Dom Raimundo a uma velocidade arrepiante.
O jacaré está aflitíssimo.
Espirra sem parar nas profundezas do grande lago.
Os seus olhos estão embaciados com lágrimas de dor.
Renato e João Miguel aproveitam e nadam velozes para bem longe dali.
- Só espero que tenhas razão, Renato, caso contrário devemos um milhão de desculpas ao velho jacaré.
O sapo mal escuta o menino, pois está concentradíssimo a nadar o mais depressa que sabe e que pode até um lugar seguro.
- Manter a tua liberdade é o que mais importa, João Miguel. Tens de cumprir a missão, tens de salvar os reis do nosso reino.