terça-feira, 24 de julho de 2012

A MISSÃO de JOÃO MIGUEL



23 de Julho de 2012

38 – A MISSÃO de JOÃO MIGUEL


- E agora, por onde começar? Zebedeu não me pode ensinar. Vou precisar de muito tempo para me conseguir orientar. Não posso partir nem estragar coisa nenhuma. Tenho o laboratório de Zebedeu à minha inteira disposição. Sou mesmo sortudo! Vou ferver água num pote e depois adiciono-lhe estas ervas. Se as ferramentas do alquimista estão ensinadas, como ele me disse, terei de escutá-las com atenção. Era tão bom se conseguissem falar, talvez me pudessem explicar alguns dos segredos, algumas das fórmulas ou alguns dos complicados procedimentos para dar vida às poções. Estes livros antigos têm as capas bastante empoeiradas. Zebedeu conhece tão bem as suas experiências que deixou de consultar os seus compêndios de alquimia. E este livro é grosso e tão pesado! – exclama o menino enquanto o vai abrindo.
Nele estão escritas as seguintes palavras:
Compreender a natureza, reproduzir a natureza, transformar a natureza. Descobrir os processos naturais é sinal de máxima inteligência. Os segredos alquímicos são mais antigos do que a história da humanidade, nasceram com o homem que entendeu o fogo e o controlou. As cinzas que dele germinaram, regeneram. O homem entendeu-as e utilizou-as para resistir ao tempo.
Ora, lê, lê, relê, trabalha e encontrarás.
Procura, lê e relê todos os livros. O último livro lido ou relido mostrará os conhecimentos anteriores e o primeiro dos livros ajudará a entender a última leitura. Depois pratica, todos os dias e a todas as horas.
Sê paciente.
Experimenta.
Fixa-te na leitura dos compêndios que melhor te agradem e volta a praticar a todas as horas de todos os dias.
Mantém-te atento a todas as transformações, aos detalhes, às linguagens da natureza.
Observa, interpreta e procura, dia-a-dia, a todos os instantes, em todos os momentos.
Sê dedicado e perseverante. Não te deixes tentar pela facilidade da desistência. Um alquimista não revela os seus segredos, nem ao próprio filho, pois a sua linguagem é única, própria, tão específica quanto complexa.
O que está em cima é como aquilo que se encontra em baixo.
Nada desaparece nem nada é criado, tudo é transformado e conservado, tudo é transmutado. O caos é a ordem e a ordem é o caos.
Respeita a natureza e todos os seus constituintes para que se possa manter a harmonia de todas as coisas.
Reaprende a ver, a sentir e a escutar. Observa as cores, desde o branco mais puro ao negro mais intenso.”
O resto das páginas está em branco. João Miguel arranca uma dessas páginas vazias e coloca-a dentro do recipiente com água fervente. Um fumo denso e cinzento eleva-se no ar.
A água ferve por mais de duas horas. O menino junta-lhe folhas secas de salgueiro, uma raiz de mandrágora, pétalas de rosas, muita hortelã, e acrescenta um pouco mais de água à água fervente.
- Não sei o que aqui vim procurar? Zebedeu disse que vim até aqui com uma ideia em mente, mas se assim foi, porque será que não me lembro dela?
Uma voz forte e tenebrosa faz vibrar o laboratório:
- Quem és tu, senão mais uma entrada da caverna, uma pequena centelha que se prepara para servir de ponte à escuridão. Lê todos estes livros, come-os como se fossem maçãs, mas convence-te do que te digo; muitas serão as vezes que atravessarás portas que não te levarão a lado nenhum. És uma sombra, uma treva sem clarão, mas esperam-te lá em cima, como quem aguarda a chegada do herói. Escuta-os, já reclamam a tua presença, já suplicam. Terás de salvar os reis do reino de Okatonga. Desta caverna escura e malcheirosa, sombria e bafienta, ascenderás como uma luminosa existência. Serás tu quem devolverá a liberdade aos soberanos da nação, presenteando-os com a nova voz da autoridade.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

MENINO CURIOSO



20 de Julho de 2012

37 – MENINO CURIOSO


Zebedeu convida o menino a entrar. Recomenda-lhe atenção. O laboratório está muito desarrumado e pode tornar-se perigoso.
Ali, onde o anão alquimista prepara as suas famosas poções, existem autênticas maravilhas. João Miguel está deslumbrado, pois sabe que nunca ninguém lá entrou.
- Como vês, não é nada de especial. Eu bem te disse! Ias ficar desapontado. Está tudo sujo, desorganizado e malcheiroso, bem ao contrário dos modernos laboratórios onde o brilho e a limpeza é tanta, que até permitem comer no chão. As minhas ferramentas já estão ensinadas, apesar de serem velhas e enferrujadas. Não sei se conseguiria trabalhar com outras, fico aflito só de pensar nisso.
O menino julga estar a sonhar. O seu maior desejo é vir a tornar-se num grande cientista para inventar uma máquina do tempo, ou então, conseguir descobrir uma fórmula secreta para moldar o tempo ou produzir nele um efeito semelhante. Assim, a avó e a mãe não mais envelhecerão e ele pode continuar a adormecer com as histórias extraordinárias que a mãe lhe conta. Também quer descobrir curas para muitas doenças, e deseja criar vacinas que possam ser distribuídas pelo mundo inteiro, principalmente pelos povos dos países mais pobres e carenciados.
- O teu laboratório é igualzinho ao que eu tinha imaginado, Zebedeu. Tudo está no seu devido lugar, até as teias de aranha. É um laboratório muito antigo, com muitas centenas de anos, não é verdade? Como foi que vieste aqui parar? Como é que te tornaste um alquimista, e quem foi que te ensinou? Terás aprendido tudo o que sabes a ler destes livros valiosos e gastos? E porque me trouxeste até aqui? Estou muito feliz, mas continuo sem entender porque fui eu a primeira pessoa que aqui deixaste entrar?
Zebedeu fica com uma cara muito séria. O João Miguel faz, de facto, muitas perguntas. Ele sabia que a sua curiosidade era invulgar, e está acima do habitual para um menino desta idade.
- Tu és mesmo muito curioso, e isso vai-te ser muito útil daqui para a frente! Se não formos curiosos, se não tentarmos encontrar respostas para as muitas coisas que nos preocupam e inquietam, acabamos por não aprender nada. Isso seria uma verdadeira tragédia! Eu sou alquimista porque o meu pai, o meu avô, o meu bisavô, o pai do meu bisavô, o avô do meu bisavô, o bisavô do meu bisavô, e todos os outros antes deles, também foram alquimistas. Todos os seus ensinamentos estão guardados neste pequeno laboratório, escondidos no coração da labiríntica floresta de Okatonga. Raras são as coisas que se encontram no seu devido lugar. Não tenho tempo nem paciência para arrumações! Ali estão empilhados frascos e mais frascos, garrafas, caixas, boiões, taças e campânulas, tudo amontoado até à base do grande carvalho, que fica bem lá para cima. São dezenas de milhares de prateleiras carregadas com centenas de milhares de poções, quase todas criações dos meus antecessores. E lá no alto, encontram-se as do mais antigo dos alquimistas de Okatonga, meu ilustre antepassado. Muitas vezes, ao preparar novos bálsamos e componentes, ao experimentar poções desconhecidas, esqueço-me de dormir e fico acordado dias e dias seguidos. Nem dou conta do passar do tempo, e também não gosto nada dele! Um dia descobrirei um raio tão poderoso que acabarei por o destroçar. Sinto-me cada vez mais velho e cansado, e agora abuso um pouco da bebida… ainda mais do que do elixir da invisibilidade. Produzi centenas e centenas de litros desse néctar, mas já quase se esgotaram. Tenho andado a desenvolver uma poção para parar com o envelhecimento mas que não contenha o poder de invisibilidade. Ainda não consegui! O tempo só gosta de se deixar derrotar quando estamos invisíveis.
O anão abre uma garrafa de aguardente que se encontra abandonada no meio da mesa e leva-a à boca. Bebe metade de um só trago e limpa as beiças à parte de trás da mão, junto ao seu pulso.
- Não tenho nada para te ensinar, meu rapaz, nem sequer posso fazê-lo! A minha condição de alquimista não o permite. São regras antigas! Vais ter de ser tu a descobrir o que aqui vieste procurar. Será um mapa o que tu procuras? Desejas obter resposta para uma pergunta secreta? Queres encontrar uma rara poção, um bálsamo valioso, uma raiz com propriedades misteriosas? Ou será que vieste apenas à procura de um sonho muito antigo? Afinal de contas, o que foi que te trouxe até aqui, João Miguel? – pergunta Zebedeu.
O menino não sabe o que dizer. O alquimista falou tanto sobre coisas tão importantes, que as suas ideias ficaram momentaneamente bloqueadas. E o anão insiste antes que as palavras saiam da boca do João Miguel.
- Tu vieste até aqui com uma ideia muito clara, não foi? Eu sei disso porque tive de aprender a saber tudo acerca de todas as coisas. Não te esqueças daquilo que vieste até aqui tentar encontrar. Agora vou deixar-te. Tens de ser tu, sozinho, a investigar. A minha missão está cumprida. Podes demorar-te o tempo todo que achares necessário, pois ele aqui não faz nenhum sentido. Lê tudo o que precisares de ler, escreve acerca de tudo o que necessitares de escrever, prova, ensaia, estuda, examina, investiga, retalha, decompõe, disseca, medita, pondera, empreende, exercita e afina tudo o que precisares de afinar, e experimenta tudo o que achares necessário experimentar. Ali ao fundo existe uma pequena cozinha, para quando tiveres fome, e lá encontrarás água fresca, fruta e comida. Diverte-te! Adeus, até qualquer dia!
O anão pega num pequeno frasco verde, e leva-o à boca.
Demorou menos de um segundo a desaparecer.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O LABORATÓRIO DO ALQUIMISTA



11 de Julho de 2012

36 – O LABORATÓRIO DO ALQUIMISTA


- Esta não é hora de brincar! Vieste aqui para veres o meu local de trabalho, e não para te divertires, e foi por isso que decidi mostrar-te o laboratório. Estou aqui sentado na minha bicicleta. Bebi a poção da invisibilidade, por isso não me vês. – explica Zebedeu.
- Este carrossel é muito bonito, nunca vi um assim tão espetacular. – diz o menino. – Será que posso dar umas voltinhas antes de partirmos? Gostava tanto de montar nos cavalos e cavalgar em todos os animais.
O anão não desarma. Insiste que é importante que João Miguel siga as suas ordens. Um selim extra nasce na bicicleta, que cresce e se transforma num tandem de dois lugares.
- Salta aqui para trás que não temos tempo a perder. Vou transportar-te até ao lugar que desejas conhecer.
João Miguel coloca-se em posição, no lugar traseiro, e pedala ao ritmo imposto por Zebedeu.
O carrossel desfaz-se após as primeiras pedaladas, e os animais que o compõem esboroam-se em minúsculas partículas de poeira luminosa.
O teto de espelho volta a endireitar-se, tal como o grande círculo de madeira, e remodela-se no chão interminável do corredor espelhado.
É muito estranho ver um tandem seguir assim tão veloz, sem condutor.
As últimas partículas de poeira luminosa desaparecem por completo. A escuridão misteriosa está de regresso. Desta vez, o menino não tem medos, nem receios, como aconteceu quando abriu, pela primeira vez, a pequena porta do salão. Ele acredita que o anão vai, finalmente, levá-lo até ao local mais secreto e importante de Okatonga.
O corredor é muito comprido, é frio, húmido, mas não tem cheiros. O menino sente que o chão se encontra impecavelmente polido, como se de um espelho se tratasse.
O chão é um espelho! O João Miguel não sabe porque a escuridão é total. O chão é teto, e o teto é chão, e as paredes são o chão e o teto, porque o corredor converteu-se num perfeito tubo espelhado enquanto pedalavam. O corredor é agora um perfeito tubo oco feito de espelhos.
- Estamos quase a chegar, não te preocupes. Falta pouco! – exclama o anão invisível continuando a pedalar.
Esta é, sem dúvida alguma, a casa mais bizarra de todas aquelas que o João Miguel já visitou. Tudo nela parece ter vida própria e acontecem coisas estranhas, como, por exemplo, esta de ele ter de pedalar o tandem de Zebedeu na mais completa escuridão.
A poção da invisibilidade deixa de fazer efeito, e a aura esbranquiçada do alquimista reflete-se nos inúmeros espelhos do grande túnel. Zebedeu para de pedalar e imobiliza o tandem no meio do corredor.
- Podes sair, já chegámos! – diz o anão.
O menino desmonta a bicicleta sem compreender. Espelhos e mais espelhos por todo o lado, um gigantesco tubo de espelhos, longo, imenso e infinito. Afinal de contas, este lugar onde pararam é igualzinho ao restante corredor, e ocorre a pergunta:
- Tens a certeza absoluta de que já chegámos?
O anão sorri enquanto regressa ao seu estado normal. De pé, agarrado ao volante da bicicleta, toca por três vezes a sua campainha. Depois, por mais três vezes, repete a função.
Após o sexto sinal sonoro, os espelhos do corredor sobem como um pano de boca de cena. Revelam um gabinete mal iluminado, sujo, desorganizado, desarrumado, bem mais alto do que largo e comprido.
As brasas de um fogareiro rudimentar são mantidas vivas por um fole de ferreiro, que sopra cadenciado. Existem muitos potes de metal e porcelana, espalhados um pouco por toda a parte. Duas balanças imponentes captam a atenção do menino. Repousam, meio abandonadas, num dos cantos da mesa, que ocupa quase metade do laboratório. Mais de cem velas apagadas estão distribuídas por diversos candelabros e lustres que pendem do alto do gabinete. O cheiro é forte, intenso, uma mistura exótica de vários condimentos, de muitos ingredientes, de líquidos e madeiras raras, de fumos e de metais combinados com odores de experiências já realizadas.
Semeados no tampo da grande mesa quadrangular, encontram-se dezenas de livros, centenas de pergaminhos empilhados com fórmulas e instruções, um recipiente com um líquido borbulhante, estatuetas de animais, um xadrez com peças de prata, sete frascos com elixires, várias caixas com bálsamos e cremes, catorze frascos com poções, muitas provetas e pipetas, várias lentes, duas lupas, um estranho microscópio, panelas, pratos, jarros, dois alguidares, duas alquitarras do tamanho do anão, uma moldura com uma gravura colorida da Primavera de Botticelli, raízes, cascas, frutos secos, plantas diversificadas, folhas e ramos e raízes, frascos rotulados com água da chuva, de orvalho, de neblinas, dos rios, de oceanos, esferas, prismas e pirâmides de vidro, um sistema ótico em forma de estrela, muitas bolas de madeiras aromatizadas, uma miniatura automatizada do sistema solar, uma caixa de música, um lindíssimo bonsai, um cérebro humano desenhado num papiro, um livro intitulado “interpretação dos sonhos”, uma caixa de ovos vazia, cestos empilhados, vários mapas enrolados em cilindros, duas máscaras de proteção, uma gaita-de-foles, uma miniatura de uma cítara, um crânio humano, uma luva de cabedal, uma ampulheta partida, copos tombados, canetas e aparos e tinteiros abandonados e quatro garrafas de aguardente, e tantas coisas estranhas das quais o menino nem sabe dizer os nomes.
O João Miguel quase não acredita em tudo o que os seus olhos veem.

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terça-feira, 10 de julho de 2012

CARROSSEL



10 de Julho de 2012

35 – CARROSSEL


Um corredor longo, de paredes e teto espelhados, estende-se até onde a vista alcança. O soalho, velho e carunchoso, estala todas as vezes que Renato salta e aterra. O corredor espelhado parece não ter fim. Espelhos e mais espelhos multiplicam imagens do menino e do sapo colorido, dando a ideia de que um exército de Joões Miguéis e de Renatos invadiu a casa de Zebedeu. As cores refletidas são semelhantes às luzes de carrosséis dos parques de diversão.
O menino agarra-se ao pescoço do sapo-guarda para não cair, e aperta as pernas com força contra o corpo do batráquio.
Zebedeu é um ótimo ciclista. A marca deixada pela sua bicicleta é uma linha reta exemplar que divide o chão em duas perfeitas metades.
Durante a longa perseguição, a linha reta torna-se curva, cada vez mais curva e apertada, até que se fecha numa circunferência de raio limitado. Renato salta e salta mas não avança para lado nenhum.
O soalho de madeira é agora o chão circular de um imenso carrossel rodopiante, muito antigo e muito bonito. A música que toca é encantadora e possui uma melodia cativante.
Renato sobe e desce mas não anda um único centímetro. O sapo está transformado num animal de madeira do mais maravilhoso carrossel que jamais existiu, e tudo isto aconteceu tão depressa que o João Miguel nem se apercebeu.
No carrossel existem muitos animais fantásticos que sobem e descem ao ritmo da bela melodia. O menino entrevê mais dois sapos-guarda como o Renato. À esquerda, quase ao seu lado, encontra-se um gato gigante, e à frente do gato está uma enorme ratazana com cores exóticas. Do lado direito, ligeiramente à sua frente, encontra-se um simpático coelho de orelhas arrebitadas. Atrás do coelho segue uma aranha cor-de-pérola com patas e focinho levemente rosados e brilhantes que piscam sem parar. No carrossel existe ainda uma carruagem esplendorosa puxada por seis cavalos negros, uma bonita raposa, um macaco e dois escaravelhos com manchas pretas, verdes e amarelas. O menino fica intrigado com a estranha composição do carrossel. Desmonta do sapo Renato para investigar o outro lado do brinquedo e encontra dois gatos siameses, um porco cor-de-rosa, outro gato gigantesco e listrado, um ouriço luminoso, um morcego avermelhado com asas cor-de-laranja, um cão com focinho de buldogue e corpo de leão e, logo atrás da aranha branca, a velha bicicleta do anão Zebedeu.
- Que carrossel encantador! É tão bonito! É um verdadeiro espanto! – diz o menino maravilhado com a obra de arte.
No teto do carrossel, todo forrado com espelhos, os animais dançam ao som da música num bailado fascinante.
- Vou andar em todos os animais! Vou entrar na carruagem, montar os seis cavalos, voar no morcego encarnado, cavalgar a raposa, o porco e a aranha. Vou divertir-me tanto neste carrossel!


segunda-feira, 9 de julho de 2012

SAPO COMPINCHA



09 de Julho de 2012

34 – SAPO COMPINCHA


Um salto apenas separa Renato e João Miguel da janela que paira no ar. O sapo coloca o menino às costas e decide pular por ela. Aterram mesmo em cima da mesa do salão.
Zebedeu sobe até à janela, fecha-a juntamente com as portadas e o ambiente torna-se sombrio e bafiento. Deixou de cheirar a chocolate, canela e limão. Os odores são agora os de uma casa velha e húmida.
O anão está a estranhar tanta confusão. Não é fácil, para quem se habituou a viver sozinho, ter visitas a vaguear pelos aposentos da sua habitação. Monta a bicicleta, e desenha três novos círculos perfeitos ao redor da mesa antes de voltar a desaparecer pela pequena porta entreaberta.
- Vai, João Miguel, corre! Foi para isto que tu aqui vieste! Eu agora já estou bem. – diz Renato com um olhar cintilante. – Despacha-te antes que lhe percas o rasto. Eu fico aqui a comer deste delicioso bolo de chocolate. Está com ótimo aspeto!
O menino está um pouco atordoado com esta agitação, mas vai ter de ser rápido se não quiser perder Zebedeu de vista. Desce das costas do Renato, desce da mesa para a cadeira, desce da cadeira para o chão e corre atrás das marcas da bicicleta.
- ZEBEDEU, ZEBEDEU! ONDE ESTÁS? ESPERA POR MIM! – reclama o João ao afastar para trás a pequena porta do salão.
Lá dentro uma escuridão total. Nada a não ser um escuro impenetrável, misterioso e assustador que o faz recuar.
- Então, o que se passa? – pergunta Renato com a boca cheia de bolo. – Não me digas que ficaste com medo do escuro, logo tu que tens sido tão corajoso.
João Miguel espera pela resposta de Zebedeu.
Está demasiado escuro para ele o seguir. Não se vê nada ali dentro
As migalhas chovem do cimo da mesa para todos os lados. O sapo está esfomeado e come tudo o que resta do bolo.
- Pronto, fiquei saciado. – exclama o Renato a lamber-se alegremente. Agora vou auxiliar-te. Eu bem te disse que estaria sempre ao teu lado para te servir!
O menino agradece a gentileza, aliviado.
Aquele escuro é bem mais assustador do que o que teve de enfrentar para descer as escadas de caracol.
- Se Zebedeu tem uma bicicleta, tu tens o sapo-guardo mais fiel de toda a Okatonga à tua inteira disposição. Salta para as minhas costas. AGARRA-TE BEM QUE VAMOS COMEÇAR A GRANDE PERSEGUIÇÃO! – ordena Renato, acendendo as cores mais brilhantes e esplendorosas do seu corpo de batráquio.
Mal atravessam a porta, tudo se ilumina, fica vivo e colorido, e as marcas deixadas por Zebedeu tornam-se visíveis e mais fáceis de seguir.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

MALDITA MAÇANETA



06 de Julho de 2012

33 – MALDITA MAÇANETA


É muito difícil abrir a janela do salão.
As pequenas mãos do João Miguel não conseguem rodar a maçaneta de marfim que escorrega com facilidade.
- AJUDEM-ME, PRECISO DE ALGUÉM QUE ME AJUDE; POR FAVOR! SOCORRO! – grita Renato numa voz cada vez mais rouca.
O menino bate nos vidros sujos para tentar acalmar o sapo, mas ele não consegue escutar. Está aflito, num pânico incontrolável, e abana a cabeça em todas as direções. Encolheu o corpo várias vezes até mais não poder, tentando fazer com que os nós da poderosa teia se alargassem, mas isso de nada lhe serviu.
Renato gastou todas as forças a tentar soltar-se. Está exausto, sem fôlego e com a garganta rouca de tanto gritar. Estaria verde de cansaço se já não fosse dessa cor.
- RENATO, RENATO; ESPERA MAIS UM POUCO QUE EU VOU AJUDAR-TE! – grita o João Miguel através da vidraça amarelecida. – Se não conseguir abrir o raio da janela, parto-a em mil pedaços! Não será uma maçaneta escorregadia que vai impedir-me de te salvar!
O chocolate que lhe suja as mãos passa para o puxador, o que torna a tarefa bem mais complicada.
- OH! Mas que raio! Estou farto, acabou-se, vou ter de partir o vidro e não se fala mais no assunto! – decide o menino muito arreliado.
Coloca-se em cima da cadeira e prepara-se para pontapear o vidro com a bota direita, quando ouve tocar a campainha da bicicleta de Zebedeu. – TRRIIM, TRRIIM, TRRIIIIIIM!
O menino olha para baixo e vê o anão com um par de luvas na mão.
- NÃO PARTAS O VIDRO; JOÃO MIGUEL! – ordena o alquimista a agitar as luvas azuis no ar, de um lado para o outro.
- Experimenta calçar estas luvas de borracha para fazeres rodar a maçaneta. Pode ser que resulte!
E com pontaria certeira, atira-as ao menino que as apanha com facilidade. Servem-lhe como uma luva!
- Vá lá, rápido, tenta agora! – diz Zebedeu, ansioso com o desfecho da ação.
Foi após a segunda tentativa que a janela se abriu. O menino salta, como um pequeno pardal, para o ramo que se encontra ali perto. Equilibra-se com cuidado e aproxima-se do sapo apavorado.
- Pronto, pronto, acalma-te! Já aqui estou para te ajudar.
Renato nem acredita no que lhe está a acontecer. Os seus olhos ficam ainda mais esbugalhados quando dá conta da presença do imprevisto salvador.
- Obrigado, muitíssimo obrigado! Não tenho palavras que cheguem para te agradecer. És um rapaz corajoso! Vieste de novo em meu auxílio. A partir de hoje estarei sempre ao teu lado para te servir! – exclama o sapo, muito sensibilizado e com lágrimas na vista.
A corda está bem apertada, mas os finos dedos do João Miguel dão conta do recado. Em pouco tempo o Renato fica livre e vibra de felicidade, mostrando as muitas cores garridas do seu corpo de sapo.
- Anda, vem comigo Renato! Estarás mais seguro em casa de Zebedeu. – ordena o menino a apontar para a janela que paira no ar junto ao ramo da sequoia.
É a primeira vez que Renato vê uma janela voadora, mas esta não é a hora nem o momento para começar a fazer perguntas sobre coisas esquisitas.

AI, QUEM ME ACODE?



06 de Julho de 2012

32 – AI, QUEM ME ACODE?


A casa de Zebedeu não é uma casa como as outras. Está dissimulada numa das regiões mais inóspitas de Okatonga, bem no interior da floresta labiríntica. Quem o tenta descobrir, acaba por desistir. Dias houve, logo após o seu desaparecimento, em que mais de mil visitantes se aventuraram na tentativa de encontrar o seu refúgio. A maioria acabou por desaparecer, e outros voltavam, completamente exaustos, ao fim de alguns dias, sedentos e esfomeados.
O João Miguel é a primeira visita que o anão recebe em sua casa. Se alguma coisa lhe acontecer, a floresta desaparecerá, e com ela a cidadela e todos os seus habitantes. Zebedeu é o único habitante que tem conhecimento desta situação. Ele tem de continuar a ajudá-lo pois é ao menino que se deve a existência do reino de Okatonga. Os animais que vivem na floresta andam agitados e irritadiços, pressentem que alguma desgraça pode estar para acontecer. O alquimista sabe o que tem de fazer para que o pior não suceda.
João Miguel e Zebedeu comeram duas fatias do bolo de chocolate.
O anão corta outra fatia generosa de bolo.
- Toma! Não tenhas medo de engordar que o meu bolo não engorda. Descobri ingredientes espantosos, que adicionei à receita, para evitar que isso aconteça. É uma poção muito simples, sem cheiro e sem sabor. Podias comer cinquenta destes bolos que não engordarias um único grama.
- Uma poção que não deixa ninguém engordar, mesmo se comer muito? Deve ser muito valiosa! – diz o menino, com espanto.
- Todas as minhas poções são valiosas, até as menos relevantes, como, por exemplo, aquela que eu uso todos os dias para não ter de tomar banho. Basta usar duas gotas do meu bálsamo “higienicus”, e o seu efeito é igual ao de um banho perfumado de duas horas. Assim economizo tempo para o meu trabalho de investigação, que é bem mais importante!
João Miguel fica muito curioso com as palavras de Zebedeu. Onde ficará esse tal laboratório secreto? Deve ser enorme e deve estar cheio de misteriosos ingredientes e de frascos coloridos. A vontade em vê-lo começa a fazer-lhe cócegas na língua.
- Tu tens um laboratório onde fabricas os bálsamos, cremes e poções, não é verdade? Deve ser maravilhoso! Eu gostava tanto que me mostrasses o lugar onde trabalhas. Posso ver o teu laboratório, Zebedeu?
O alquimista estava à espera da pergunta. Foi para isso que o menino se aventurou pela floresta, e tem de ser recompensado.
- Sim, eu mostro-te esse lugar que todos gostariam de visitar. Mas aviso-te que vais ficar desapontado. O “laboratório” não é comparável àquilo que estás a pensar, mas para mim, é mais que perfeito! – diz Zebedeu.
- Como sabes o que estou a pensar? Também consegues ler pensamentos?
O alquimista não responde, salta da cadeira com agilidade, e monta a bicicleta que estava esquecida no chão, junto à perna da mesa.
- Anda, segue-me, se fores capaz! – diz a pedalar velozmente ao redor da mesa, dando três voltas completas antes de desaparecer pela porta entreaberta.
O João Miguel tarda em reagir.
Zebedeu sai do salão quando ele ainda se entretém com uma fatia do seu bolo favorito.
Os dedos, o queixo, os lábios e os cantos da boca estão pintados de chocolate. O menino salta da cadeira e começa a correr em sua perseguição.
- SOCORRO! SOCORRO! ALGUÉM ME ACUDA! SOCORRO! SOCORRO! QUEM ME PODE AJUDAR? AJUDEM-ME, POR FAVOR, AJUDEM-ME QUE ESTOU PRESO! SOCORRO! AJUDEM-ME! HAJA ALGUÉM QUE ME AJUDE! – ouve-se uma voz rouca e aflita que soa de uma das janelas fechadas do salão. – SOCORRO, POR FAVOR, VENHAM ACUDIR-ME SENÃO MORRO! AI MINHA MÃEZINHA, QUE NUNCA FIZ MAL A NINGUÉM! ACUUUUUDAM-ME! – repete a voz rouca e cansada, em grande aflição.
O João Miguel hesita! Quer ir ter com Zebedeu para visitar o laboratório. Foi para isso que aqui se deslocou, mas não pode deixar de escutar esta prece. Alguém está aflito e necessita de auxílio.
Olha uma última vez para a porta por onde o anão seguiu antes de voltar atrás. Vai até junto da janela onde escuta a voz. Quem poderá ser? Zebedeu vive sozinho, não recebe visitas e não gosta de ser incomodado por ninguém, ou será que é mentiroso?
A janela é alta e o menino não consegue lá chegar. Os gritos continuam, e ele usa a maior das cadeiras como escadote para poder trepar. Abre a portada da janela e fica espantadíssimo com o que os seus olhos veem. Do lado de lá das sujas vidraças, está o sapo Renato atado à volta de um grosso tronco de árvore. Um dos seus ramos encontra-se à distância de um simples salto e a tarefa de salvação está nas mãos do menino investigador.


quinta-feira, 5 de julho de 2012

CHOCOLATE, LIMÃO E CANELA




05 de Julho de 2012

31 – CHOCOLATE, LIMÃO E CANELA


João Miguel segue as pegadas de Zebedeu através de muitas salas espelhadas.
A poeira do soalho transforma-se em canela e o cheiro alastra-se por toda a casa. O refúgio de Zebedeu fica saturado pelo cheiro forte e intenso dessa especiaria, e também por um leve e perfumado toque de limão. As pegadas do alquimista continuam visíveis na canela espalhada pelo chão.
O menino está muito atento a estas pistas quando, de repente, surge Zebedeu por um dos espelhos laterais, montado numa bicicleta antiga e enferrujada.
- Ainda aí estás? Segue-me até ao meu gabinete, não sejas preguiçoso! – diz o alquimista antes de voltar a desaparecer por uma outra parede espelhada.
O João Miguel corre muito depressa até ao espelho por onde o anão fugiu a pedalar, mas apenas consegue ver o seu próprio reflexo.
- Deve ser um espelho mágico, ou então, alguma porta misteriosa como a velha porta de madeira da salinha de entrada.
O menino bate cautelosamente com a mão no grande espelho da parede. Ao contrário dos espelhos que ele conhece, este é morno e parece feito de tecido. A superfície espelhada é uma espécie de cortina que se movimenta sempre que lhe toca.
- Que estranho. Afinal estes espelhos são cortinados mornos feitos de tecido muito fino e delicado. Será que Zebedeu está por detrás desta cortina? – questiona, incrédulo, o João Miguel. – É extraordinário este espelho feito de pano. Assim nunca se parte. Pode ser dobrado e transportado para todos os lados sem problema nenhum. Se me embrulhar nele, ninguém me consegue encontrar.
O menino afasta com cautela o fino espelho de pano e espreita por detrás dele. Do outro lado descobre um grande salão, em tudo igual ao salão da casa da porta vermelha, que visitou na cidadela de Okatonga. Nesta divisão existe a mesma mesa, o mesmo número de cadeiras, as mesmas madeiras velhas e compridas do soalho, as mesmas paredes sujas e antigas com duas janelas fechadas. A porta entreaberta também existe ao fundo da divisão. É de lá que chega um intenso e agradável cheiro a bolo de chocolate, que se mistura com o odor a canela e limão que entra pelo outro lado do espelho. Neste chão não existem pegadas, só muitas linhas circulares que foram desenhadas pelas rodas da bicicleta do anão, por cima da canela derramada. Os círculos estão projetados ao redor da mesa, que se encontra no centro do salão.
- Que tal um belo e delicioso bolo de chocolate recheado com creme de chocolate acabado de derreter? – pergunta a voz de Zebedeu vinda do lado de dentro da porta entreaberta. – senta-te à mesa que eu já aí vou ter contigo.
O menino obedece e sobe para a mesma cadeira que usou durante o pequeno-almoço com Mestre Tino e os seus ajudantes invulgares. Recorda essa bizarra refeição, os rostos dos animais e a confusão causada pelo macaco Isidoro.
- Vais provar o meu belo bolo de chocolate recheado de chocolate. É de comer e chorar por mais! – informa Zebedeu, antes de levar o manjar ao salão.
Barulhos de pratos e de talheres misturam-se com ruídos de gavetas e de portas a bater. O cheiro fica cada vez mais forte e delicioso. O menino fecha os olhos e consegue ver as cores acastanhadas do bolo antes de ele aparecer na travessa oval que Zebedeu transporta na mão direita, levantada ao nível da cabeça.
- Ora então, cá estamos! Faz muito tempo que eu já não cozinhava.
O anão Zebedeu é maior do que o menino imaginava. É quase do mesmo tamanho de Mestre Tino. O seu rosto é redondo, com olhos pequenos e escuros. Tem uma barba castanha e afilada que lhe cai do queixo numa trança. As sobrancelhas são espessas e muito carregadas, e estão unidas por sobre o seu nariz largo e saliente. O anão é calvo, mas tem um cabelo ondulado que nasce na parte superior da nuca e lhe bate nos ombros estreitos e ossudos. Zebedeu não é magro nem gordo. Tem uma boca larga e sorridente que tranquiliza quem o vê pela primeira vez. Usa suspensórios de cabedal com um cinto largo de fivela de ferro, e calça umas botas militares parecidas com as de João Miguel. Mas o que mais impressiona na figura do anão alquimista são as suas mãos gigantes, de dedos robustos.
- Afinal, tu não cheiras mal Zebedeu. A mãe contou-me que não gostas de te lavar, mas até cheiras muito bem.
O anão solta uma sonora gargalhada enquanto deposita na mesa o formidável bolo de chocolate recheado de chocolate.
- Se calhar a tua mãe não conhece a minha história! - responde Zebedeu.
- Mas isso não é possível! A história de Okatonga é a nova história da mãe. Todas as histórias da mãe nascem num saco que ela guarda na despensa da cozinha, e as histórias que o saco lhe conta não são mentirosas. A mãe diz que todas elas aconteceram, ou estão para acontecer. – exclama o João Miguel algo exaltado.
O anão junta mais as suas fartas sobrancelhas enquanto escuta o menino com atenção.
- Mas o que se passa contigo aqui em Okatonga, não é a história do saco da tua mãe! Onde é que tu foste buscar essa ideia? – pergunta Zebedeu.
O João Miguel fica admirado. Jura que o que lhe caiu em cima, do alto da prateleira da despensa, só pode ter sido o saco invisível das histórias da mãe. E o anão que agora fala consigo, é um anão alquimista chamado Zebedeu. Tudo bate certo com aquilo que a mãe lhe começara a contar.
- Tu estás a ver é se me enganas, não é verdade? Tu és Zebedeu, o célebre anão alquimista da cidadela de Okatonga, e é verdade que não gostas de tomar banho! - confirma o menino enervado com tantas contradições.
- Hummm! Se calhar, agora que voltas a insistir nesse assunto, és capaz de ter razão. Eu não gosto muito de tomar banho. É um desperdício de água, e de tempo, estar para ali deitado na banheira a esfregar o corpo. Não tenho alma de peixe e preciso de tempo para trabalhar. – responde Zebedeu depois de cortar duas fatias de bolo de chocolate. – Agora come este pedaço de bolo. Vais ver que está igualzinho ao que tanto gostas.
O menino fica espantado! Como é que Zebedeu conhece a receita da sua avó?
- O cheirinho é o mesmo, e o recheio é igual ao do bolo que a avó Dulce costuma fazer. Muito obrigado, Zebedeu, és muito simpático!
E os dois ficam sentados, em silêncio, a apreciar o delicioso bolo de chocolate.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

SALA DE ESPELHOS


04 de Julho de 2012

30 – SALA DE ESPELHOS


Um grande MIAUUU ecoa na escuridão vindo do alto da imensa galeria. Um longo MIAUUU, muito alto e estridente, acompanhado do eco metálico do mecanismo de abertura. O gato foi-se embora, deixando o menino sozinho, trancado na escuridão.
- Dava-me muito jeito ter uns olhos luminosos como os do Sarmento. Nem lhe agradeci as deliciosas bolachas. São parecidas com as de Esmeralda mas não têm o mesmo sabor. Esta sabe a frango assado no forno, e a que comi antes sabia a arroz de lulas. Que bolachas tão apetitosas! – exclama o João Miguel.
Um denso nevoeiro, azul acinzentado, invade a galeria, provocando arrepios ao menino. Fica completamente cercado por esta névoa gelada por onde só os morcegos conseguem avançar. Ouvem-se os silvos de muitos deles que chegam com a imprevista neblina. A estes também se juntam os guinchos de alguns ratos e ratazanas que escaparam ao Sarmento. A galeria foi invadida por centenas destes animais voadores e pelos seus companheiros rastejantes, que lançam ruídos enervantes. Os ratos e ratazanas aproximam-se perigosamente do João Miguel enquanto centenas de morcegos voam por cima da sua cabeça.
O menino para de comer. Talvez tenham sido as migalhas das suas bolachas a atrair tanta bicharada. Os guinchos e os silvos estão quase em cima dele quando, inesperadamente, uma chave entra numa das fechaduras metálicas da velha porta de madeira, dando duas voltas e depois mais duas.
Os ruídos dos animais desaparecem por completo.
Uma segunda chave entra na outra fechadura e mais quatro voltas se escutam antes da porta se abrir.
Dos morcegos e das ratazanas, nenhum sinal.
- NÃO GOSTO DE RATOS, DE JEITO NENHUM! Não gosto de ratos nem de morcegos. São uma autêntica praga, e são os únicos animais de Okatonga que se atrevem a descer até aqui. O frio e o mau-cheiro não os incomodam. Já lhes mandei tirar os olhos, mas mesmo assim ainda conseguem cá chegar. Maldita bicharada, cega e irritante. Nem o Sarmento dá conta do recado. Entra, de que é que estás à espera, João Miguel? Entra, se tens assim tanta vontade. Vais finalmente conhecer o Zebedeu da história da tua mãe.
O menino fica espantadíssimo com o aparecimento repentino do famoso anão alquimista. A porta está aberta e ele entra, sem hesitar, em dois saltos dados com grande agilidade. As duas chaves que abriram a velha porta de madeira, voltam a fechá-la novamente.
A primeira coisa de que João Miguel dá conta, é que não existe apenas um espelho nesta casa. Todas as paredes são feitas de espelhos. Existem reflexos do menino espalhados pelo chão, pelo teto, e por todas as paredes da salinha de entrada. Não existe mais nada aqui para além de espelhos. São mais de vinte imagens de si, refletidas em outros tantos espelhos, e mal a porta velha se trancou, num espelho também se transformou.
- Então João Miguel, de que é que estás à espera? – pergunta-lhe o seu reflexo que se encontra por debaixo das negras botas militares. – Não tenhas medo de Zebedeu! Porque o deixaste desaparecer? Se vieste até aqui é porque o desejas conhecer, não é verdade? Então, de que é que estás à espera? Eu assim já não te entendo. – e mal o seu reflexo acaba de dizer estas palavras, o chão transforma-se num soalho gasto, antigo e muito empoeirado. As pegadas do anão alquimista estão agora bem visíveis, marcadas na sujidade, e são fáceis de seguir.
- Que casa tão estranha! Para onde terá ido o Zebedeu? Será que está no final destas pegadas? – pergunta João Miguel – Zebedeu? Zebedeu? Onde estás tu, Zebedeu? Posso entrar?
E uma voz, não muito distante, diz-lhe que sim, que pode entrar, que já devia ter entrado há muito tempo, e que foi para isso que Zebedeu lhe foi abrir a porta.
- Não te consigo descobrir com tantas paredes de espelho. Só me vejo a mim e a mais trinta eus. Vou seguir as tuas pegadas para te tentar encontrar.