03 de Julho de 2012
29 – CONVERSA COM SARMENTO
Os olhos luminosos de Sarmento permitem ver, com
clareza, uma porta de madeira velha em muito mau-estado e muitas raízes
penduradas um pouco por toda a parte, como teias suspensas. Chegam da superfície,
lá de cima, e são de vários tamanhos, formas, cores e espessuras.
- Esta é a porta da casa de Zebedeu. – diz o gato
lambendo a pata direita – Deve estar a descansar, ou então a trabalhar, ou
então a dormir, ou então a experimentar poções e bálsamos nele mesmo, ou então
está a admirar-se ao espelho, ou a comer, ou está a limpar os frascos mais
antigos, ou então está a ler as suas enciclopédias botânicas, ou está a
consultar os compêndios de anatomia, ou então está a verificar os meus últimos
relatórios, deve ser isso que ele está a fazer, está a verificar os meus
últimos relatórios sobre tudo aquilo que se passa em Okatonga! Por isso, ainda
é capaz de demorar! Os meus relatórios são muito metódicos e detalhados, contam
tudo o que de mais importante acontece na cidadela e na floresta, com rigor e
muita exatidão, com minúcia e precisão. Para dizer a verdade, não existe nada
de mais exato do que os meus relatórios, e são escritos com toda a clareza. Sou
o melhor e mais organizado secretário do anão alquimista, sou eu quem lhe traz
todas as novidades e todas as notícias, e também sou eu que afasto os ratos e
as ratazanas mais atrevidas. Eu sei quem tu és, o que fazes aqui, de onde vens,
quem te ajuda e ajudou, quem te tentou apanhar, porque saltaste de mim, porque
tens medo do escuro, e de doenças, e de que alguma coisa má possa acontecer à
tua mãe ou à avó Dulce, sei que gostas de bolo de chocolate recheado com creme
de chocolate, sei que gostas de histórias novas e cheias de perigos, sei que
gostas de fazer perguntas e de explorar. Eu sei tudo, tudo, tudo, e, às vezes,
torna-se aborrecido saber tanto acerca de todas as coisas. É por isso que eu
escrevo tantos relatórios. Desde que bebi aquela estranha poção de Zebedeu,
fiquei com este estranho poder de ficar a saber tudo sobre todas as coisas,
mesmo algumas que ainda estão por acontecer. E também adoro pregar partidas ao
tolo do Medina, esse preguiçoso, nada me dá mais prazer do que enervá-lo,
principalmente desde que ele decidiu fazer parte do bando de Mestre Tino, nesse
dia de má memória.
O menino está espantado com tanta informação prestada
pelo gato Sarmento. Não esperava encontrar ninguém neste lugar. Sente-se melhor
por já não estar sozinho e o frio e os maus-cheiros deixaram de o incomodar.
Mas a fome continua a dar sinais sonoros que chegam do seu estômago vazio.
- He lá, que grandes roncos de insatisfação nos chegam
dessa barriga, João Miguel! Não te inquietes que eu trago aqui no meu saco uns
suculentos rabinhos de ratazana. Estou a brincar, eu sei que não irias gostar
de os comer. – diz o sarmento sorridente. – E que tal umas bolachas? Estas são
do teu agrado. Quanto a mim, prefiro os rabos de ratazana e as espinhas de
arenque e sardinha que são uma verdadeira especialidade. Se quiseres podes
experimentar, sabem melhor do que aquilo que parecem, acredita no que te digo.
O João Miguel aceita as deliciosas bolachas que o
sarmento lhe ofereceu e come-as como se fossem o mais delicioso dos manjares.
- Obrigado, Sarmento! Estava mesmo com muita fome, e
estou contente por te ver. Não esperava encontrar alguém por aqui, a não ser o
anão Zebedeu. Foste tu quem há pouco se enfiou por debaixo das raízes do
castanheiro, não foste? A Esmeralda nem te viu, mas eu dei conta de alguém a
correr pelo meio das ramagens.
O gato trinca as espinhas com satisfação enquanto
responde ao menino.
- És um excelente observador, João Miguel. Sim, era
mesmo eu, tu viste-me mas não me reconheceste. Sou muito veloz, sou o gato mais
rápido de Okatonga, quando corro nada mais importa para mim. Assim que passei
por debaixo das raízes, entrei no pátio, carreguei na mais lisa das lajes, abri
o mecanismo, desci rapidamente pela longa escadaria, sem cair, contei os duzentos
e vinte e dois degraus até chegar o fim, cacei ratos e ratazanas atrevidos, afiei
a minha longa lança e as unhas de guarda, acendi os olhos e fiquei à tua espera
para te ajudar. E agora, é aqui em baixo que tudo irá acontecer. Já falta pouco
para o Zebedeu vir abrir a porta. Não te esqueças que ele é perfeitamente normal,
absoluta e perfeitamente normal. Nós, todos os outros, é que somos muito, mesmo
muito esquisitos! Tu também és muito esquisito, João Miguel! Olha bem para ti! Um
menino minúsculo, vestido com um pijama todo sujo e rasgado, calçado com umas botas
negras da tropa e sentado no último degrau de uma grande escadaria de pedra. Somos
ou não somos todos esquisitos? Mas o mais esquisito de todos nós é o palerma do
Medina, esse gato vaidoso e preguiçoso. Ele é um vergonhoso pateta peneirento.
Ao acabar estas palavras, Sarmento salta por cima do João
Miguel e sobe as escadas numa velocidade estonteante, deixando novamente o menino
no meio da escuridão.
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