sábado, 30 de junho de 2012

ESCADA DE PEDRA




30 de Junho de 2012

26 – ESCADA DE PEDRA


Um silêncio profundo invade o espaço por onde rasteja João Miguel. Ao passar cuidadosamente por debaixo das grandes raízes, os barulhos da floresta deixaram-se de escutar. O interior do carvalho é oco, tal como Esmeralda tinha dito, e está sujo e mal iluminado.
O menino olha lá para o alto e vislumbra metade da lua iluminada. Aos poucos, os seus olhos habituam-se à penumbra e logo descobre as lajes de granito retangulares que forram este pátio interior. Começa a limpar o pó, as areias, a terra, a vegetação, os galhos e as ramagens secas que o vento arrastou. Usa as mãos e as botas nas tarefas de varrimento e, em pouco tempo, coloca à mostra quase todas as lajes que pavimentam o recinto. São ásperas, rugosas, texturadas. Nenhuma delas se apresenta lisa ou polida.
João Miguel continua a varrer tudo o que falta, já sem a companhia da lua por metade.
A noite cai. Com ela chegam também nuvens escuras que tapam a lua solitária. Isto não impede o menino de continuar a verificar laje após laje, a apalpar o chão com os dedos finos, a tatear, a afagar, a explorar todas as pedras enquanto varre a sujidade.
Ao chegar ao centro do pátio, retira os ramos e as folhas ressequidas que tapam a mais pequena de todas as lajes retangulares. Percebe, de imediato, que ela é não só a mais pequena como é também a única que, até agora, se apresentou lisa numa das partes.
- Deve ser esta a laje que Esmeralda referiu. Está menos áspera aqui no meio. Vou fazer força e pressioná-la como ela me disse.
João Miguel carrega no centro da laje de pedra com as mãos, usando toda a sua força. De imediato, a laje desce cerca de três centímetros para dentro do chão, regressando depois à posição inicial. O menino levanta-se, assustado, e é então que um cilindro de pedra, com a sua altura, sai do chão e levanta a laje que acionou o mecanismo de abertura. Um buraco, com a forma de três quartos de uma circunferência, surge no pavimento de granito, dando acesso a uma grande escadaria de pedra que desce por ele adentro.
João Miguel tem agora cinco segundos para vencer os seus medos, cinco segundos apenas, nada mais. Tem de ser capaz de iniciar a descida ou a abertura voltará a fechar-se até amanhã. Os degraus descem em caracol e ele só consegue ver os quatro primeiros, tal é a escuridão daí para baixo.
Respira fundo, e com uma coragem do tamanho do universo, começa a descer contando os degraus da escadaria:
- Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove,… - canta o menino em voz alta para não se sentir tão sozinho.
O mecanismo volta a fechar-se e uma escuridão absoluta acompanha o João Miguel. A descida faz-se no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. O menino vai-se orientando com a mão esquerda colada ao imenso pilar central, também ele construído em granito.
- Vinte e dois, vinte e três, vinte e quatro, vinte e cinco…

quinta-feira, 28 de junho de 2012

O CARVALHO CENTENÁRIO



28 de Junho de 2012

25 – O CARVALHO CENTENÁRIO


A luminosidade alaranjada do fim do dia faz adivinhar mais calor para amanhã. A lua, em quarto crescente, dança por entre as nuvens no céu de Okatonga.
O menino lembra-se como começou a história da mãe. A casa do anão está camuflada com muitas folhas, ramos, troncos esquecidos e pedras carregadas de musgo. Lembra-se que o anão não gosta de quase nada e tudo na floresta o incomoda. A única coisa que aprecia é a sua cara feia e um imenso espelho onde passa horas a admirar-se. Foi assim que a mãe lhe contou e é assim que João Miguel o imagina. Um rezingão mal cheiroso, mas também um sábio alquimista, tão inteligente como os mais famosos cientistas do mundo.
Se o anão incumbiu Esmeralda de o ajudar, é porque sabia que o João Miguel tinha chegado a Okatonga, mas como terá isso acontecido? Tantas perguntas, tantas interrogações. A maior de todas as dúvidas é esta que vai fazendo constantemente a si mesmo:
- Porque será que Zebedeu me considera assim tão importante? Porque é que eu sou tão importante para o anão alquimista?
Sem se aperceber, o menino fala alto. Esmeralda ouve-o e responde:
- A tua presença em Okatonga é um acontecimento importantíssimo! Ninguém aqui te pode fazer mal, João Miguel. Se alguma coisa te acontecer, Okatonga inteira poderá desaparecer e Zebedeu é o único de nós que sabe disso. Poe esse motivo, ele fez questão que eu te protegesse e te ajudasse.
Esmeralda e João Miguel descem pela encosta da pequena colina como se não estivessem cansados. É ali em baixo, junto ao grande castanheiro, que fica a entrada do domínio secreto de Zebedeu.
Os dois param junto ao grande carvalho centenário.
Zebedeu não recebe visitas de ninguém neste refúgio.
João Miguel olha para Esmeralda e entende que ele terá a honra de ser recebido pelo famoso anão alquimista.
- Vai, não tenhas receio. – diz-lhe a menina. – O grande tronco da árvore é oco. Entrarás nele por entre as suas imensas raízes e encontrarás um mal iluminado pátio, forrado a lajes de granito. Os teus olhos terão de habituar-se à penumbra e tu terás de descobrir a mais polida de todas as lajes. Colocarás as mãos em cima dela para pressionares o mecanismo de abertura. O chão abrir-se-á e surgirá uma escada apertada, em caracol. Terás apenas cinco segundos para começares a descer, caso contrário, o alçapão voltará a fechar-se e terás de esperar um dia inteiro para que o possas reabrir. Descerás com cuidado, vagarosamente e com cuidado. Ficarás zonzo quando estiveres a meio da descida. Terás de ter muita atenção ao desceres a escadaria. Só quando terminares de contar duzentos e vinte e dois degraus te encontrarás junto à porta de entrada da casa do anão Zebedeu. Aí fará frio, muito frio, e estará muito escuro também. Perderás a noção do espaço, escutarás ruídos estranhos e cheirará muito mal. Vais sentir-te perdido e abandonado pois ele demora muito tempo a abrir a porta. – explica Esmeralda.
- E ele saberá quando eu lá chegar? – pergunta o irrequieto João Miguel.
- Zebedeu sabe tudo aquilo que acontece em Okatonga. Não te preocupes que ele vai saber quando tu lá chegares. E agora já só me falta dar-te o último e mais importante dos conselhos. Aconteça o que acontecer, demore Zebedeu o tempo que demorar, promete-me que não sobes as escadas sem teres falado com o anão alquimista.
João Miguel olha para as raízes do grande carvalho antes de dizer sim a Esmeralda. Jura ter visto alguém ou alguma coisa a passar rapidamente por entre elas, ou talvez tenha sido apenas impressão.
- Viste, Esmeralda? O que é que se terá escondido debaixo das raízes da árvore? – pergunta o menino, desconfiado.
Esmeralda olha muito séria para ele, e volta a declarar, aumentando o tom da voz:
- Toma atenção ao que te estou a dizer e não te distraias, por favor! Promete-me que não sobes as escadas antes de conheceres e falares com Zebedeu! É importante que assim o faças.
- Sim, sim, eu prometo-te, Esmeralda, não te preocupes. Só voltarei a subir os degraus depois de falar com o anão alquimista.
E um sorriso de alívio renasceu no bonito rosto da menina.
- Então vai, faz como te disse e tudo correrá bem.
Esmeralda não espera para ver o João Miguel a desaparecer por entre as longas raízes do grande carvalho. Ela não quer que o amigo dê conta do que sente o seu coração.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

PROMESSA É PROMESSA



26 de Junho de 2012

24 – PROMESSA É PROMESSA


Está muito calor no interior profundo da grande floresta de Okatonga. Os pés do João Miguel ardem-lhe dentro das negras botas que os protegem. Foram gastas muitas horas a caminhar. A tarde caiu, é quase noite outra vez.
Esmeralda pouco falou durante o longo passeio. O destino, que disse estar perto, afinal, estava bem distante. Os dois seguem pela densa vegetação há quase oito horas desde que Dona Suzete os tentou engolir. Comeram apenas alguns frutos que encontraram pelo caminho e beberam água fresca de uma cascata que descia até um pequeno lago com forma circular. A vontade de nele se banharem foi grande, mas só havia tempo para matar a sede antes de seguirem viagem.
Andaram toda a tarde e o resto da tardinha, avançaram determinados, andaram e andaram e andaram sem repousar.
Continuam, já quase noite, a subir por uma pequena elevação de terreno que acaba com as últimas forças do João Miguel.
- Estou cansado, Esmeralda, muito cansado, e ainda está muito calor! Podemos descansar um pouco, só um instante, antes de continuarmos a avançar? Já não sinto as pernas, tenho os braços e as mãos feridos, trago o cabelo carregado com folhas e galhos e estou farto de caminhar. Acho que estamos perdidos. Afinal de contas, para onde é que tu nos estás a levar?
No cimo da pequena colina, Esmeralda observa a paisagem. Um sorriso ilumina-lhe o rosto. A jornada está bem perto do fim.
- É ali, João Miguel, lá em baixo, junto àquela acácia centenária, que acaba a nossa viagem. Só falta mesmo um bocadinho.
João Miguel não escuta as palavras da menina, tal é o seu cansaço. Está sentado com as pernas estendidas e os braços esticados ao lado do corpo, de mãos abertas, apoiadas no musgo. Só pensa em tirar aquelas botas negras para dar alívio aos pés. Um dia inteiro passado a marchar. Okatonga é uma floresta labiríntica, feita de verde, muito quente e abafada, com uma densa e quase impenetrável vegetação.
Os efeitos da poção demoraram mais tempo a desaparecer no João Miguel. Por esse motivo, a primeira fase da viagem não lhe custou tanto a realizar. Mas agora está vencido pelo cansaço, pela fome, pelas dores e pelos pés doridos.
- Ali, João Miguel, é ali em baixo que fica aquilo que procurava! Finalmente chegámos!
Esmeralda tem de dizer que destino é este que tanto desejava. João Miguel tem a boca seca, as pernas trémulas e sente os pés a latejar, mas isso não o impede de perguntar:
- Estiveste calada quase toda a viagem. Pensei que estavas perdida. A tua cara só mostrava preocupação e a tua testa desenhava linhas carregadas de dúvidas.
A menina coloca-se de joelhos bem pertinho do João Miguel. As mãos estão coladas às dele e os seus olhos verdes brilham de contentamento.
- Chegámos ao domínio privado do famoso anão Zebedeu! Ali em baixo fica o lugar que todos gostariam de descobrir, é o local mais secreto e procurado de toda a floresta de Okatonga. A minha preocupação e o meu silêncio deveram-se ao secretismo da nossa missão. Nada nem ninguém nos podia seguir. Nada nem ninguém podia suspeitar que vínhamos visitar o anão alquimista. Tu não sabes, mas foi ele que me pediu para eu te ajudar.
João Miguel fica espantado com a novidade. Esmeralda não só conhece o lugar onde Zebedeu se esconde, como foi o próprio anão alquimista que lhe deu instruções para ela o ajudar.
- É verdade o que me contas? Esta viagem trouxe-nos até à casa de Zebedeu? – pergunta o menino com satisfação. – Terei muito prazer em o conhecer.
Encontrando energia onde estas não existiam, João Miguel levanta-se, sacode o pijama, sacode as mãos e o cabelo e fica pronto para a derradeira etapa da viagem.
- Sim, João Miguel, é mesmo verdade. Ali em baixo fica o refúgio de Zebedeu. Foi ele que me disse para eu te ajudar, mal tu chegaste a Okatonga, e eu assim fiz, conforme prometido.

domingo, 24 de junho de 2012

PARAR O TEMPO



23 de Junho de 2012

23 – PARAR O TEMPO


Após ter ajudado o coelho Belchior a libertar-se da apertada teia de Dona Suzete, Esmeralda foi ter com João Miguel ao alto do velho carvalho. Os dois conseguem reconhecer-se, apesar do seu estado de invisibilidade. Os seus olhos vislumbram os corpos transparentes um do outro. Uma luz forte e esbranquiçada idêntica à dos pirilampos, ilumina-lhes os contornos e os cabelos.
- Se não nos tivéssemos tornado invisíveis, a grande aranha branca ter-nos-ia devorado. - diz Esmeralda com um profundo sentimento de alívio. - O efeito desta poção dura pouco tempo, por isso, foi importante fazer com que a grande aranha branca desaparecesse rapidamente para bem longe daqui.
João Miguel ainda sente no pescoço o bafo morno que saiu da boca do inseto. As pernas tremeram-lhe e, por instantes, até deixou de respirar.
- Eu fiz tudo o que me pediste, Esmeralda. Subi a este carvalho e atirei as pedras à aranha. Não sei como consegui trepar até aqui, estava tão nervoso.
Apesar de não conseguir ver o rosto nem o corpo da amiga, a aura luminosa dos seus contornos e a luz resplandecente dos cabelos tranquilizam João Miguel, que exclama:
- Parecemos seres estranhos de um filme de extraterrestres. E consigo cheirar e sentir tudo o que existe na floresta com maior intensidade. O ar está carregado de sabores e as palavras saem coloridas com as sete cores do arco-íris. Vejo por entre as copas e os troncos das árvores, escuto o canto de pássaros distantes e vejo, lá muito ao longe, o Belchior saltitante a ser perseguido pela Dona Suzete.
Esmeralda sorri.
- O que acontece com esta poção é que, enquanto estivermos sob o seu efeito, para além de estarmos invisíveis, o tempo não tem sobre nós qualquer poder e não envelhecemos um único segundo.
João Miguel gostaria de oferecer milhares de litros desta poção à sua mãe pois assim ela permaneceria sempre igual. Os frascos que Esmeralda transporta na sua sacola só podem mesmo ser poções do famoso Zebedeu, e o menino pergunta:
- É verdade, não é Esmeralda? As poções que me deste são criações do anão alquimista?
A menina abana afirmativamente a cabeça. Os seus longos cabelos luminosos bailam para cima e para baixo enquanto os efeitos da bebida começam lentamente a desaparecer. O cabelo é o que primeiro se torna visível, depois o rosto, depois o corpo e as pernas. Em seguida surgem os joelhos e os pés, finalmente os braços e as mãos, os dedos e o sorriso.
- Vês, o que é que eu te disse? O efeito desta poção é de curta duração, mas é muito útil em algumas circunstâncias. Não devemos abusar dele pois é um dos mais raros e difíceis de encontrar. Agora vamos, chega de conversa! O nosso destino está próximo, mas ainda temos algumas horas de caminho pela frente.
- De que destino fala Esmeralda? – pensa João Miguel para os seus botões.
Os efeitos da bebida ainda não lhe passaram, e ele continua a apreciar as cores fantásticas que pintam cada palavra da amiga, continua a sentir os perfumes sublimes de todas as plantas da floresta de Okatonga e continua a gozar essa rara e morna experiência que é a de não se sentir a envelhecer.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

INVISIBILIDADE


19 de Junho de 2012

22 – INVISIBILIDADE


- Assustá-los ou comê-los? – pensa a aranha Suzete antes de tomar uma decisão. – Que beleza ter estas dúvidas deliciosas, sentir nascer água na boca com o cheirinho apetitoso e tenro que sobe desde aquela clareira. Vou comê-los! Está decidido e não vale a pena pensar mais no assunto.
Dona Suzete avança com a firme intenção de comer João Miguel e Esmeralda.
Os pássaros param de cantar.
O vento deixa de soprar.
As folhas e ramagens desistem de sussurrar.
Esmeralda levanta-se instintivamente como se tivesse uma mola debaixo de si. Tira um frasco minúsculo da pequena bolsa que traz sempre a tiracolo, e bebe o seu conteúdo incolor com avidez. Diz para João Miguel fazer o mesmo, e ele bebe o resto do líquido sem se levantar, sem questionar, sem hesitar. O menino experimenta algo de estranho a vibrar na floresta, como se um recém-adquirido novo sentido o alertasse para a existência de grande perigo.
Instantes antes de Dona Suzete os devorar, Esmeralda e João Miguel desaparecem misteriosamente da clareira deixando a grande aranha branca com cara de poucos amigos.
- Mas como é que isto pode ter acontecido? Onde se terão metido as duas tenras criaturas? Desapareceram misteriosamente, de um momento para o outro, mesmo em frente dos meus quatro olhos. Será que estou a ver bem ou preciso de dois pares de óculos? Isto é coisa muito misteriosa. Ainda sinto o cheiro perfumado das crianças espalhado pela clareira. É mais visível do que os seus corpos que daqui desapareceram. Magia, Feitiçaria! É isso que aqui se está a passar?

Um, dois, três, quatro, encontrar o João Miguel
Cinco, seis, sete, oito, levá-lo para o quartel
Nove, dez, onze, doze, são ordens do coronel

Um, dois, três, quatro, segui-lo por este troço
Cinco, seis, sete, oito, prendê-lo num calabouço
Nove, dez, onze, doze, antes da hora de almoço

Um, dois, três, quatro, tenho de o descobrir
Cinco, seis, sete, oito, impedi-lo de fugir
Nove, dez, onze, doze, não me posso distrair

Belchior salta e corre e pula com tanto empenho e concentração, que nem dá conta da presença de Dona Suzete junto à clareira. Choca com ela com tamanha violência que os dois ficam tombados no meio do chão de barriga para o ar. A aranha é rápida a reagir, vira-se com destreza e avança até ao coelho cinzento. Começa a envolvê-lo com uma teia fina mas poderosa enquanto pergunta:
- Como te atreves a atacar-me desta maneira traiçoeira? Não sabes com quem te acabaste de meter, coelho louco e insolente? A tua hora chegou, encontraste Suzete no pior dos dias para provocar a sua ira.
Com voz amedrontada, o coelho responde:


Tento encontrar o João
Um menino visitante
é um perigo para a nação”
Palavras do presidente

Desculpe senhora aranha
Não era minha intenção
Mil perdões pela façanha
Do fundo do coração 

Mestre Tino me enviou
Para dar conta do recado
Mas agora que me apanhou
Ai de mim, estou condenado

Dona Suzete pensa duas vezes antes de engolir o apetitoso coelho Belchior. Se calhar é boa ideia dar uso ao animal saltitante para conseguir encontrar as crianças desaparecidas.
- Falas só desse tal João Miguel mas, na verdade, ele anda acompanhado de uma rapariga que não tem ar de visitante. São dois os fugitivos, não apenas um! Que raio de ordens te deu esse tal presidente Tino?
Do alto de um frondoso e velho carvalho começam a chover pedras que caem junto à aranha branca. Algumas acertam-lhe em cheio na cabeça causando-lhe muita dor e desconforto. Suzete, cada vez mais irritada, olha para o alto da árvore com os seus quatro olhos de cristal mas não consegue ver ninguém. Apenas recebe cada vez mais pedradas no focinho peludo, nas patas e no corpo. Decide subir até à árvore ao lugar de onde voam as pedras.
Belchior fica sozinho por segundos e começa a sentir que alguém o liberta daquela fina e forte teia que o aperta.
- Schiuuuu! Sou eu, a Esmeralda! Tu não me consegues ver porque tomei a poção da invisibilidade para poder escapar à maléfica Suzete. Quase nos apanhava, a mim e ao João Miguel. Vou libertar-te Belchior, mas se continuares a perseguir-nos juro-te que apareço assim invisível na tua toca e CORTO-TE AS ORELHAS!
O coelho cinzento chora duas lágrimas de satisfação que lhe deslizam até aos grandes bigodes na ponta do focinho, e responde baixinho:

Palavra de Belchior
É palavra verdadeira
Ficar vivo é bem melhor
Que morrer nesta clareira

Prometo que não persigo
Prometo que já não corro
Eu sou muito vosso amigo
Salva-me, senão eu morro

Enquanto Dona Suzete permanece distraída com a chuva de pedras que o invisível João Miguel lhe lança do alto do carvalho, Esmeralda liberta Belchior facultando-lhe a salvação.

Nunca mais irei esquecer
Este gesto de bondade
Agora irei viver
Com maior felicidade

Vou atrair a aranha
Para que possam fugir
Ela é lenta, não me apanha
E vocês podem seguir

Com saltos repetidos, uns atrás dos outros, na mesma posição, Belchior acicata a grande aranha branca que, furiosíssima, se vira a ele tentando-o alcançar.
- Ai se eu te apanho, coelho maldito, nem sabes o que te vai acontecer! Como é que tu te conseguiste libertar, ó orelhudo cinzento e felpudo? Assim que te colocar as patas em cima vais arrepender-te do que acabaste de fazer.
Belchior segue a saltitar, sem pressas, para a zona norte da floresta de Okatonga, levando atrás de si a abespinhada Dona Suzete que não para de barafustar.


terça-feira, 19 de junho de 2012

EXPLICAÇÕES



18 de Junho de 2012

21 – EXPLICAÇÕES


A história deste saco invisível tem revelado segredos que o João Miguel jamais conseguiria imaginar. Em nenhuma outra história da mãe surgiram personagens tão pouco merecedoras de confiança. Até Esmeralda tem mostrado atitudes estranhas e algo incompreensíveis, e ainda não lhe explicou a razão para lhe ter dado a poção do encolhimento. O menino volta a perguntar em tom vigoroso:
- Então Esmeralda, diz-me lá porque me deste a beber a poção do encolhimento?
A menina sorri, entende as dúvidas e a irrequietude do amigo e responde com uma voz melodiosa:
- Nada do que aqui se passa acontece como no teu mundo, João Miguel. Se pensares bem, tudo isto que aqui ocorre tem motivos bem fortes para assim acontecer e mora no mais profundo de ti. Dei-te a beber a poção do encolhimento porque queria que tu ficasses do meu tamanho. Estavas muito crescido para eu te poder ajudar. E quanto ao resto, vejo que compreendeste. Tens razão quando dizes que o coelho Belchior atrai os visitantes à cidadela como fez contigo. Também é verdade que a todos os visitantes são oferecidas botas militares para que não desistam de encontrar Okatonga. E quanto à receção na cidadela, com a chegada da bonita carruagem com Belchior como guia, ela serve apenas para transportar os visitantes até às masmorras do palácio. É lá que são feitos prisioneiros e foi lá que também colocaram os membros da família real. Tu tiveste muita sorte, João Miguel. A carruagem pulou tanto que fez a roda saltar. Belchior ficou aflito quando te viu do lado de fora da viatura e correu a avisar o Mestre Tino. O grande buldogue fez soar os alarmes e os soldados-sapos acionaram as alavancas que movimentam a cidadela. Do interior dos seus alicerces profundos, saltaram milhares de escaravelhos para te capturar. Essa é a única tarefa desses insetos controladores, encontrar visitantes desaparecidos ou aqueles que tentam escapar das masmorras do palácio. Por isso eu te ajudei, por isso eu te fiz sair rapidamente de Okatonga pelo túnel secreto da casa da porta vermelha. Por isso te dei a poção do encolhimento, caso contrário não caberias nos corredores e nas partes mais estreitas e sombrias da passagem.
João Miguel fica mais tranquilo com estas explicações. Tudo o que Esmeralda lhe diz faz sentido e não tem motivos para duvidar dela, nem tão pouco da sua amizade. Mas tudo tem sido tão estranho desde que o saco invisível caiu por cima dele lá do alto da mais alta prateleira da despensa.
Sem que os dois meninos deem conta, a silenciosa dona Suzete aproxima-se lentamente da clareira onde a conversa vai acontecendo. Passaram muitos anos desde que a grande aranha branca se aventurou pelas regiões menos inóspitas da floresta. O sapo Renato conseguiu espicaçar-lhe a curiosidade e aqui está ela a tentar alcançar os dois amigos que continuam distraídos na sua ocupação.

ALBERTO E ALBERTA



15 de Junho de 2012

20 – ALBERTO e ALBERTA


João Miguel persegue Esmeralda correndo pela densa floresta de Okatonga. O menino não sente cansaço, nem fome, nem receio e não sente necessidade de continuar a correr. Nascem-lhe muitas perguntas para as quais necessita de respostas.
- Vou parar Esmeralda, para quê continuarmos a correr a esta velocidade? O meu pijama está cada vez mais rasgado e esta clareira é ótima para descansarmos um pouco.
A menina abranda e acaba por ceder a algum do cansaço provocado pela grande correria.
- Tens razão! A cidadela já está bem longe e não falta muito para chegarmos ao nosso destino. – concorda Esmeralda um pouco ofegante.
Para chegarmos ao nosso destino? – interroga o menino muito admirado – Mas que destino é esse de que falas? Eu ainda não consegui entender nada do que se tem passado desde que cheguei a este estranho lugar. Estou outra vez perdido na grande floresta e tenho uma montanha de perguntas para ti. Tens de me ajudar a compreender tudo o que aqui acontece. Afinal de contas, de quem é que andamos a fugir?
Esmeralda sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria de explicar tudo ao menino de pijama e de botas de soldado, que está a ficar nervoso e impaciente.
- Acalma-te, vá lá, não fiques assim que não vale a pena. Senta-te aqui ao pé de mim que eu explico-te tudo.
João Miguel obedece e senta-se no fresco relvado em frente de Esmeralda que prepara o esclarecimento.
- Esta grandiosa floresta onde nos encontramos faz parte do grande círculo de proteção da cidadela de Okatonga. É um imenso labirinto que foi criado pelos governantes para impedir a fuga aos visitantes. Quando Zebedeu começou a fabricar os milagrosos e extraordinários bálsamos e poções, foi difícil impedir que a fama dos seus produtos chegasse aos povos vizinhos. Foram muitos os que começaram a chegar à cidadela e mais ainda os que destruíram partes importantes das nossas grutas e dos nossos vales. Muitos sujavam e danificavam a floresta para tentar alcançar Okatonga. Zebedeu não apreciava a publicidade e não gostou de ter de trabalhar mais para satisfazer as vontades e as necessidades de tanta gente. Eram tantos e tantos visitantes, alguns tão ricos, que tudo se modificou. De início ainda conseguiu trazer muita riqueza à cidadela, que cresceu em beleza e majestade e ganhou reconhecimento pelos atributos extraordinários da arte do anão alquimista. Mas tudo piorou. Os visitantes começaram a fazer filas aos milhares, filas que percorriam todas as ruas, ruelas, becos e avenidas da cidadela. Alguns ficavam dias e noites a aguardar a sua vez para serem atendidos por Zebedeu. O alquimista deixou de conseguir fabricar as poções para os habitantes de Okatonga. Um dia, fechou-se dentro de casa e os visitantes começaram a fazer muito barulho, ameaçaram partir as portas e as vidraças da casa de Zebedeu e acabaram a guerrear uns contra os outros. Foi nesse dia que o anão resolveu desaparecer para sempre. Mas antes de deixar de vez a cidadela, Zebedeu doou um grande tesouro, composto por milhares de frascos, garrafinhas, potes e boiões com as suas poções mais valiosas, aos nossos Reis Alberto e Alberta. E desde então, coisas muito estranhas começaram a acontecer.
João Miguel escuta atentamente as palavras de Esmeralda, e não consegue evitar mais perguntas:
- Mas então, se os reis de Okatonga são Alberto e Alberta, o que foi que lhes aconteceu para ser o Mestre Tino a mandar na cidadela?
Esmeralda ajeita as pernas para ficar mais confortável e continua a sua explicação:
- Essa oferta de Zebedeu aos nossos reis deu origem ao início da era da grande cobiça. Quadrilhas de malfeitores e de ladrões sem escrúpulos tentaram roubar o novo tesouro real vezes sem conta. Os próprios visitantes, quando souberam do desaparecimento do anão alquimista, atacaram o palácio e ameaçaram a família real. Muitos acabaram por ser presos e foram colocados nas masmorras do castelo. Foi então que, com grande malvadez, o chefe da guarda do palácio, juntamente com oito dos seus mais fiéis seguidores, resolveram revoltar-se para tomarem o poder da cidadela e passarem a controlar o tesouro que Zebedeu deixou aos nossos reis. E tu já os conheces, João Miguel. Estivemos sentados à mesa com eles. Mestre Tino é esse chefe e os seus discípulos são Baltasar, Aroma e Amora, Medina, Judite, Isidoro e Belchior. O grande buldogue aliciou o coronel-sapo para ele não dar voz de comando às tropas na defesa da família real e a sala do tesouro foi facilmente tomada pelos traidores. No dia seguinte, os reis Alberto e Alberta foram feitos prisioneiros e lançados às masmorras.
João Miguel não quer acreditar nas palavras de Esmeralda. A ser verdade o que lhe está a dizer, Belchior e o sargento-sapo aliciaram-no para o fazerem prisioneiro. A sua simpatia era falsa e interesseira. E dispara mais um conjunto de perguntas.
- É por isso que o coelho Belchior atrai os visitantes à cidadela? Foi por isso que o sargento-sapo me ofereceu estas botas? Foi por isso que me fizeram aquela estranha receção em Okatonga? Tudo isso para fazerem de mim um prisioneiro? E porque me deste a beber a poção do encolhimento? Porquê?

sábado, 9 de junho de 2012

MADAME SUZETE



08 de Junho de 2012

19 – MADAME SUZETE


Renato permanece quieto, intimidado pela grande aranha branca com voz de metal. Quer mover-se, quer recuar, nem que seja só um bocadinho, mas não consegue. As pernas tremem-lhe, os braços perderam forças e os seus grandes olhos vermelhos deixaram de pestanejar.
- Então, o gato comeu-te a língua? Quem és tu e o que fazes aqui? – insiste a aranha branca.
As palavras não saem da boca de Renato que treme tanto como uma apetitosa gelatina de frutas. Os quatro olhos de cristal da aranha brilham intensamente. As patas do grande inseto levantam-se e ela toca por três vezes no pequeno capacete do sapo-soldado.
- Alô! Está alguém em casa? Perdeste o juízo ou ficaste mudo de repente? Afinal de contas, o que foi que te trouxe até tão distantes paragens? Desembucha de uma vez, caso contrário terei de te comer como fiz com o ouriço! Preferes falar ou ser comido?
O sapo muda de cor, as pintas coloridas do corpo ficam cinzentas, o verde fica pálido e os seus olhos vermelhos ficam baços e inexpressivos. Engole em seco, com dificuldade, ganha coragem e começa a responder:
- Hmmmm….hmmmm, desculpe… desculpe-me senhora aranha, mil perdões. A última coisa que desejava era incomodar tão formosa criatura. Desde que nasci que os meus olhos jamais admiraram animal tão belo e viram tanta formosura. A senhora dona aranha é bela e muito simpática.
- Dona Suzete! O meu nome é Suzete, Madame Suzete. E tu, como te chamas? – pergunta num tom menos ameaçador.
- Eu sou Renato, um simples sapo-soldado às ordens do Coronel-sapo, às ordens do coelho ministro Belchior, às ordens do presidente MestreTino. Vim aqui ter por mero acaso. Um simpático rapaz auxiliou-me por duas vezes quando tombei. Saiba a dona Suzete que eu sou algo desajeitado e caio com muita facilidade. A minha cidadela agora mexe-se com muita regularidade, mexe-se muito e rodopia e desce e sobe com tamanha agitação que eu passo a maior parte do tempo a ser projetado pelos ares e a tombar no chão com violência. Passo mais tempo deitado do que de pé a guardar as muralhas de Okatonga. – explica o Renato com muita velocidade e muitos perdigotos, e continua – Esse menino seguiu depois, acompanhado de uma amiga, pelo interior da floresta. Os dois são bastante simpáticos, e rápidos também. Mal eu lhes agradeci a gentileza, correram velozes em direção ao coração da floresta e nunca mais os vi. Tentei segui-los, tentei alcançá-los, saltei, pulei, corri e foi assim que acabei por aqui chegar.
Madame Suzete esfrega as patas, aproxima-se do sapo e coloca os seus quatro olhos de cristal em frente aos olhos pálidos de Renato.
- Se tu conseguiste cá chegar, também esses dois aventureiros de que me falas são capazes de repetir a tua proeza e isso não me agrada mesmo nada.
A aranha começa a produzir uma fina, elástica e pegajosa teia que usa para enrolar o Renato. Com grande habilidade prende-o ao gigantesco tronco da sequoia como se ele fosse uma pequena múmia em forma de sapo. A cabeça é a única parte do corpo que fica a descoberto e o sapo reclama:
- Madame Suzete, por favor, não me deixe aqui preso desta maneira. Que mal lhe fiz eu para merecer este castigo?
Antes de começar a descer, a aranha vira-se para Renato respondendo-lhe num tom de voz muito assustador.
- Caluda! Estás com sorte por eu estar sem apetite, caso contrário já te tinha engolido. Vou partir em busca dos teus amiguinhos, cheira-me que devem ser bem gostosos e tenrinhos. Assim que eu os encontrar, virei ter contigo para fazer uma bela sopa de sapo colorido.
Renato não acredita no que acaba de ouvir. O seu passeio transformou-se num autêntico pesadelo e, pior do que isso, também acaba de transformar o passeio de João Miguel e de Esmeralda num enorme pesadelo. O sapo não aguenta e começa a gritar:
- MALVADA MADAME SUZETE! MALVADA, MALVADA, MALVADA….!