quinta-feira, 29 de novembro de 2012

À PORTA DO FAROL



28 de Novembro de 2012

57 – À PORTA DO FAROL

A inesperada aparição de Belchior deixa o João Miguel inquieto.
Como terá o coelho conseguido chegar aqui tão depressa?
As tropas do coronel-sapo foram derrotadas com a ajuda das forças aéreas de Dona Beatriz, e os ministros encontram-se muito distantes. Estão afastados da capital nas profundezas da floresta de Okatonga, bem perto do grande lago negro de Dom Raimundo. Nem mesmo dando uso a toda a sua rapidez, o coelho conseguiria regressar à cidadela num tão curto espaço de tempo.
O menino está convencido que tudo não terá passado de uma simples miragem motivada pelo cansaço.
- Tenho de subir o farol para salvar os reis de Okatonga.
A extensa e larga avenida convida ao passeio. Converge desde o lago até um portão de ferro junto ao qual se ergue o imenso farol.
Os passeios ao longo da alameda são bastante largos e contêm dezenas de candeeiros e muitas árvores frondosas. Ao meio da via, intercaladas por meia centena de metros, encontram-se seis calçadas esguias, cada uma com quatro palmeiras altíssimas, transmitindo a bizarra sensação de que a avenida está sempre a crescer.
O menino anda pela via uma boa meia hora até conseguir chegar perto do farol. O rosto muda com o espanto causado pela imensa construção cilíndrica.
- ENA PÁ! O farol deve ter uns duzentos metros de altura! E esta estrutura de pedra que o suporta não terá menos de cinco. Os degraus que subo estão como novos, todos em laje, e esta porta de entrada é colossal, construída em madeira maciça. Reparo que não tem nenhum tipo de fechadura, nenhuma maçaneta, nem campainha nem qualquer abertura.
O edifício é colossal, e encontra-se tão limpo e tão radioso como se o tivessem acabado de pintar.
- QUE LINDO! É mesmo bonito! E este jardim de Okatonga não seria o mesmo sem este monumento espantoso. Pena é que o Mestre Tino se tenha lembrado de o transformar numa prisão. Mas que ideia sinistra a do buldogue ditador.
Sem mais demoras, o menino bate na porta e empurra-a, tentando abri-la com estes gestos simples.
A entrada permanece fechada.
- Que porta invulgar, sem fechadura, sem campainha nem sino para tocar! Mestre Tino deve ter inventado este sistema de clausura para trancar para sempre os reis de Okatonga. Mas que mente tão diabólica.
Do alto da construção, as vozes continuam a lançar aos ventos apelos impacientes:
- Aqui em cima! É aqui em cima, no alto do farol, que terás de nos vir salvar!
O menino olha para o topo da estrutura e pensa em voz alta:
- É impossível chegar até lá acima pelo lado de fora. Que bom seria se eu fosse uma coruja como Beatriz, e tivesse asas para voar. Seria fácil e rápido. Assim, não me resta outra alternativa que não seja a de tentar abrir a porta. Mas como fazê-lo se não existe nenhuma fechadura ou ranhura?

terça-feira, 27 de novembro de 2012

O MAIS BELO DE TODOS OS JARDINS



28 de Novembro de 2012

56 – O MAIS BELO DE TODOS OS JARDINS

O sol, acabado de nascer, transforma o jardim num imenso arco-íris. Flores de todas as cores embelezam os relvados e os canteiros, que se encontram espalhados um pouco por toda a parte.
São vinte e quatro as estátuas que circundam o lago octogonal. Os passeios que o rodeiam são largos e terminam em dois degraus que descem até um imenso relvado que se estende até onde a vista alcança.
O jardim não tem muros a cercá-lo, é imenso e, para qualquer lado que se olhe, tudo se encontra composto, organizado e muito harmonioso. Não existe uma ponta de relva mais alta do que outra, as palmeiras são quase todas da mesma altura, os candeeiros estão espaçados os mesmos metros entre si e as árvores e sebes estão lindamente aparadas.
Os mármores do pavimento junto ao lago brilham como um espelho. A água é tão límpida, tão cristalina, que os peixes dourados parecem nadar no vazio. Os elegantes repuxos espiralados soam compassados e caem, segundo a segundo, na água do lago, permitindo calcular o tempo com facilidade. O menino conta sessenta mergulhos de sessenta repuxos e sorri de contentamento.
A água está tépida, e os peixes dançam e brilham como estrelas ao luar.
- Que jardim maravilhoso! Nem vale a pena dizer que é o mais bonito jardim que alguma vez visitei. Tudo o que existe em Okatonga não para de me surpreender. E pensar que aqui por baixo existem subterrâneos escuros, imundos e mal-cheirosos.
João Miguel descalça as botas negras para retirar o resto das águas sujas que lhe causam desconforto. O pijama, o cabelo e o corpo ainda estão todos molhados.
- Que bom seria ter uma toalha para me enxugar. Ainda me vou constipar! A avó Dulce anda sempre atrás de mim, de chinelos na mão. Não gosta nada que eu ande descalço pela casa ou me esqueça de secar o cabelo depois do banho. Está sempre a dizer que me constipo, e que a culpa é toda minha se isso acontecer. Ai se ela me visse agora neste estado, o que teria ela para me dizer?
O menino pendura a camisa do pijama num pequeno arbusto, virado para o sol, juntamente com as botas militares já desatadas. Senta-se na relva curta, que de tão bem aparada, se assemelha a um gigantesco tampo de mesa de bilhar.
Está calor e em breve tudo estará seco para que a aventura possa continuar.
- O farol é imponente e muito bonito. Tem sete riscas brancas e cinco vermelhas, e as luzes piscam em tons de verde e azul, quase tão intensas como o sol da manhã.
João Miguel resolve levantar-se e dar pequenos passos na direção do farol de onde chegam, com clareza, as mesmas duas vozes de há pouco:
- Aqui, estamos aqui, João Miguel! É no alto do farol que terás de nos vir salvar! Aqui, estamos aqui em cima, João Miguel! É no alto deste farol que terás de nos vir salvar!
Já não resta nenhuma dúvida. Foi ali, bem no alto do farol, que o malvado Mestre Tino prendeu os reis de Okatonga. O buldogue tirano enviou os ministros Aroma e Amora pelos túneis do esquecimento até estes jardins escondidos no interior do palácio da cidadela. Encarceraram os reis Alberto e Alberta no alto do edifício para que nunca mais pudessem ser resgatados.

- Um, dois, três, quatro, semeada no jardim
Cinco, seis, sete, oito, uma flor carmesim
Nove, dez, onze, doze, com perfume de jasmim

Um, dois, três, quatro, semeada no quintal
Cinco, seis, sete, oito, uma flor do olival
Nove, dez, onze, doze, com perfume outonal

Um, dois, três, quatro, semeada na planura
Cinco, seis, sete, oito, uma flor cor de doçura
Nove, dez, onze, doze, com perfume de aventura

Um, dois, três, quatro, semeadas pelo campo
Cinco, seis, sete, oito, as flores cor de sarampo
Nove, dez, onze, doze, brilham como o pirilampo

Um, dois, três, quatro, semeada no jardim
Cinco, seis, sete, oito, esta história, para mim
Nove, dez, onze, doze, nunca mais terá um fim

Vindo, sabe-se lá de onde, o saltitante Belchior pega nas botas e na camisa de pijama do menino e desata a fugir com as peças do vestuário. O João Miguel fica sem reação, por instantes, até que resolve perseguir o animal cinzento, correndo atrás dele como uma flecha.
- Se pensas que vais escapar, estás muito enganado, coelho maluco! – grita o rapaz muito exaltado.

Um, dois, três, quatro, esta bela brincadeira
Cinco, seis, sete, oito, torna a história verdadeira
Nove, dez, onze, doze, vai durar a vida inteira

Um, dois, três, quatro, não me tentes apanhar
Cinco, seis, sete, oito, vou correr até ao mar
Nove, dez, onze, doze, e nas ondas mergulhar

E do alto do farol as vozes repetem, aflitas, o mesmo apelo:
- Aqui, estamos aqui, João Miguel, no alto deste farol! Terás de o subir para nos salvar!
Belchior volta-se para o menino e deita-lhe a língua de fora. Mostra-lhe as botas e a camisa do pijama, agitando-as com as patas bem acima da sua cabeça.

Um, dois, três, quatro, não me consegues chegar
Cinco, seis, sete, oito, sou ligeiro a saltar
Nove, dez, onze, doze, deste para outro lugar

E sem se saber como, o coelho cinzento desaparece de forma tão misteriosa como aparecera. As botas e o pijama caem no meio da relva, no exato lugar onde o ministro saltava com exagero.
O menino resgata as peças de vestuário que ficaram secas com tanta agitação.
Calça-se e veste-se com desembaraço, expressando o seu desagrado com a estranha situação:
- Mas que coelho mais apalermado! Como será que ele aqui chegou? Deve ter usado uma poção de Zebedeu, e isso não é bom sinal. Se calhar, sou só eu a imaginar estas coisas devido ao cansaço provocado pela aventura. Talvez tenha sido uma simples ilusão, ou talvez uma miragem, mas não posso negar que vi e escutei o coelho Belchior! E agora, TENHO DE CUMPRIR COM A MINHA MISSÃO! Tenho de salvar os reis de Okatonga, tenho de salvar Alberto e Alberta antes que algum pesadelo possa alterar, por completo, o rumo da história.
O sol já vai alto, o jardim continua colorido, e o farol aguarda com ansiedade a chegada do ilustre viajante.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O CÉU AZUL DE OKATONGA



20 de Novembro de 2012

55 – O CÉU AZUL DE OKATONGA

A pesada tampa de ferro é colocada de novo no respetivo lugar, enquanto o menino desce o poço, até uma quase completa escuridão, por umas pequenas e ferrugentas escadas de ferro que estão cravadas na parede.
Vai falando consigo para não se sentir tão sozinho:
- Eu sou curioso, sempre fui, e agora sei também que sou valente. Não tenho medo de quase nada, só tenho medo que a mãe deixe de saber contar histórias ou que a avó Dulce se esqueça da receita do bolo de chocolate recheado de chocolate. Aqui em baixo cheira a esgoto, mal consigo respirar e está muito escuro. Vou ter de enfrentar estes túneis fedorentos para encontrar o acesso às prisões do palácio real.
Um rio caudaloso avança pelos subterrâneos, o que os torna muito húmidos e ruidosos. É extremamente incómodo passear por aqui.
João Miguel continua a descer pelas escadas enferrujadas e recorda o aviso das senhoras tartarugas; - A partir de agora apenas podes contar contigo, pois ninguém virá em teu auxílio.
Ao recordar estas palavras, começa a cair uma forte chuvada.
A água invade o túnel de acesso aos subterrâneos por onde o menino desce, arrastando-o até às profundezas dos esgotos da capital.
Por sorte, o mergulho forçado neste rio de detritos não foi dado de grande altura. A maior parte da descida já tinha sido realizada, mas nem a sua coragem, nem o seu espírito de aventura o impedem de ter de respirar o ar fétido e carregado deste ambiente sombrio.
O menino volta a falar consigo próprio para não se sentir tão abandonado:
- Aqui em baixo misturam-se os fedores mais horríveis de Okatonga. Respirar é uma tarefa praticamente impossível. E para tornar as coisas ainda mais i n t e r e s s a n t e s, há água a cair de todos os lados, dificultando-me a deslocação.
O menino abre a sacola, mais uma vez, e retira um bonito boião de cerâmica branca, em forma de pera. Numa quase total escuridão, abre o frasco e aplica a pomada gordurosa por debaixo das suas narinas. Um perfume maravilhoso composto por fragâncias de alfazema, jasmim, âmbar, miosótis, toranjas, madeiras raras do oriente, imbuia, óleo de sândalo, canela e chocolates negros dos mais amargos do mundo, invade-lhe todos os delicados poros e células do nariz eliminando por completo os odores pestilentos dos esgotos de Okatonga.
- Assim torna-se muito mais fácil respirar e a aventura subterrânea vai passar a ser menos cansativa. A água já me chega à cintura, mas tenho de seguir com a minha viagem. Vou avançar usando a mesma sequência de passos que a toupeira Anastácia me ensinou durante a caminhada pelos túneis do esquecimento. Seguir a direito muitos metros, virar à direita e continuar a avançar, virar de novo à direita, depois à esquerda, seguir em frente por algum tempo, depois virar à esquerda, depois novamente à esquerda, depois subir, subir e subir e continua a subir, depois virar à direita, seguir a direito, virar à esquerda, seguir em frente, muito, muito tempo, o mais longo de todos os períodos em que sigo a direito, antes de subir, de virar à esquerda, de novamente virar à direita para depois descer um pequeno declive e voltar a subir, mesmo a pique. AI CREDO, quase me desequilibrava, mas não caí! Vou continuar esta longa caminhada, agora a direito, sem abrandar a marcha. Viro à esquerda, depois à direita de novo, viro à direita e volto a subir. Já não ouço os ruídos da chuva intensa que há momentos tinha começado a cair.
A escuridão é a mesma, continua igual desde que resolveu descer aos misteriosos subterrâneos da cidadela.
Um arrepio gelado desce pelas costas do João Miguel.
Um vento gélido chega do fundo das galerias, sopra com intensidade, sopra até tornar-se num imenso vendaval. O menino fica confuso, e hesita na escolha do caminho.
Respira fundo três vezes, fecha os olhos e prepara-se para interpretar mais esta mensagem da natureza:
- Estou a crescer! Estou a deixar de ser criança. Esta é a parte mais importante da viagem. É por isso que sinto frio e este estranho desconforto. Tudo faz parte do processo. Escuto, com clareza, as palavras da chuva e dos ventos gelados. Eles fazem parte de mim. Eu sou a centelha que servirá de luz à escuridão. Estou a aprender como todos os anteriores aprendizes de alquimista, e já sei como resistir às tempestades. Elas transportam histórias importantes para a nossa sobrevivência.
Um arrepio gelado volta a percorrer as costas do menino, como um grande choque elétrico. Ele deixa que a ventania gelada percorra o seu corpo.
A viagem pelos esgotos labirínticos está a terminar.
O vento parou.
O escuro e o silêncio são, de novo, a sua única companhia.
Levanta o braço esquerdo, bem alto, e estica-se para tenta alcançar o teto da galeria, sem obter resultados.
O túnel cresceu durante o passeio, aumentando a sensação de vazio e de abandono. João Miguel continua a tentar alcançar o teto da galeria e descobre outros degraus de ferro, iguais aos que usou para aqui entrar. Sobe por eles acima, com paciência e muito cuidado, até alcançar o topo do longo sistema de esgotos da cidadela. Retira um pequeno pau de giz de dentro da sacola de couro, e segura-o na mão direita, preparando-se para escrever.
No teto da galeria desenha uma perfeita circunferência branca com o pequeno pau de giz. Nele surge uma grande abertura circular que é atravessada pela luz de um sol esplendoroso, e tudo se ilumina.
Nunca os subterrâneos de Okatonga estiveram assim tão luminosos.
O menino sai dos esgotos pela abertura que acaba de desenhar, e descobre um formidável jardim composto por centenas de árvores exóticas de variadíssimas espécies. Palmeiras altíssimas encontram-se espalhadas por todo o lado, um lago octogonal com repuxos que desenham espirais de água de vários tamanhos, ocupa o centro do jardim. Este lago está rodeado por estátuas e colunas gregas, e candeeiros do início do século XX. Tem bancos de madeira pintados de verde, ornamentados a ferro forjado com bonitas pernas negras com patas e garras de felinos.
Existe ainda um grande farol vermelho e branco, situado numa zona mais remota, junto ao grande passeio e a um dos gigantescos portões de ferro do jardim.
João Miguel consegue escutar, com clareza, as vozes de duas pessoas, que chegam desse lugar. Ele sabe que só podem ser as vozes dos reis Alberto e Alberta, que não o imaginam por aqui.
O céu de Okatonga está mais azul do que nunca.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

TARTARUGAS DE PEDRA



14 de Novembro de 2012

54 – TARTARUGAS DE PEDRA

Um silêncio estranho tomou conta das ruas após o imenso reboliço de Okatonga. É grande o desconforto causado por tamanha tranquilidade.
O vento não sopra, os restantes escaravelhos desaparecem quase tão depressa como invadiram as ruas e avenidas da cidadela.
A floresta de Okatonga está parada, impávida e serena, a aguardar uma ordem de alguém.
As botas militares deixam de fazer aquele ruído tão característico que se habituou a escutar. Esta súbita acalmia incomoda João Miguel, e ele não fala com receio de não conseguir escutar a própria voz.
O chão da avenida por onde marcha o João Miguel começa a erguer-se, muito devagar, até formar uma semiesfera composta de pedras da calçada e que o impede de avançar. A pequena montanha é três vezes mais alta do que ele, e tem uma aparência muito pesada. A enorme semiesfera acaba por desprender-se do chão, por onde agora gira lentamente.
Outras quatro semiesferas formam-se da mesma maneira, e rodopiam como a primeira. Após darem várias voltas, dois pares de pernas carnudas saem de dentro de cada uma delas, bem como uma comprida cabeça careca.
Sem barulho, sem ruídos e vagarosamente, as cinco tartarugas de carapaça empedrada chegam perto do menino, que não consegue disfarçar o espanto. Os répteis olham para ele como se já o conhecessem. Sorriem, trocam olhares cúmplices entre si, olhares de satisfação, mas nenhum som lhes sai pela boca.
De repente, dão início a uma estranha conversa:
- AI, AI, AI, o raio da velhice! – exclama a primeira tartaruga.
- Em que dia é que estamos? – pergunta a segunda tartaruga.
- Temos de nos despachar que eu tenho muitas coisas para fazer. – responde a terceira tartaruga.
- Eu não posso perder o muito tempo pois a minha família depende de mim. – reclama a quarta tartaruga.
- Quantos dias vamos ficar por aqui? – pergunta a última tartaruga.
- Isso é algo complicado de se saber. – fala a primeira.
- Ai, ai, parece que foi apenas ontem que aqui estivemos pela última vez! – diz a segunda.
- O meu marido não me queria deixar vir. – afirma a terceira.
- Este negócio das aventuras com meninos perdidos devia pagar impostos, ou ser sujeito a uma licença. São coisas complicadas e nós já estamos a ficar velhotas para os ajudar. – informa a quarta.
- Quem é que teria coragem de cobrar uma taxa a meninos aventureiros? Quem? Depressa deixaríamos de existir se isso acontecesse. Vocês estão a ficar meio tolas com a idade! – comunica a quinta.
O menino fica confuso.
As tartarugas, imponentes como pequenas serranias, continuam a discutir assuntos enigmáticos.
- Vamos lá ver o que irá acontecer. Tenho a impressão de me ter esquecido de algo muito importante. – volta a falar a primeira das tartarugas.
- Um destes dias esqueci-me da chave de casa e não consegui abrir a porta. Estava do lado de dentro da fechadura. – declara a segunda tartaruga.
- No próximo sábado vou mudar as dobradiças das portas. Andam a fazer uns ruídos muito irritantes. – anuncia a terceira tartaruga.
- Ai, Ai, que vida a minha! Devo andar adoentada. Sabem que perdi mais de seis quilos? – argumenta a quarta tartaruga.
- Vocês são mesmo umas teimosas! Gostam de me arreliar. Estão fartinhas de saber que eu não gosto de fazer estas coisas. – informa a quinta tartaruga.
- Não faço ideia do que estás a falar. Sabes tão bem como qualquer uma de nós o que viemos aqui fazer. – avisa a primeira tartaruga de pedra.
- Sim, temos de executar aquilo que está estabelecido. – retribui a segunda tartaruga de pedra.
- Todas sabíamos que isto iria acontecer. Repararam como o tempo mudou na passada sexta-feira? Não existe um aviso melhor do que esse. – adverte a terceira tartaruga de pedra.
- Temos de nos dirigir na direção do palácio. É lá que tudo tem de acontecer. – conta a quarta tartaruga de pedra.
- E tu, pequeno rapaz? Terás de nos seguir. Vamos indicar-te o local por onde deverás entrar para alcançar as masmorras reais. É lá que Mestre Tino mantém prisioneiros os nossos reis Alberto e Alberta. – participa a quinta tartaruga de pedra.
João Miguel está encantado com a imponência das cinco senhoras de pedra. Avançam pela grande avenida, vagarosamente, mantendo-o abrigado no meio delas, dando-lhe proteção. As velhas senhoras estão aqui para o ajudar, disso não restam dúvidas. Acompanham o menino, que vai espreitando por entre as pernas vigorosas das cinco gigantes de pedra.
As casas, as ruas, os candeeiros, as muralhas e os torreões voltam a estremecer. É a voz de Mestre Tino que volta a ecoar como um trovão pela capital do reino.
- ENTÃO ESTA É A TUA RESPOSTA, MIÚDO? PREFERES CONTINUAR COM A TUA AVENTURA. JULGAS-TE CAPAZ DE ME ENFRENTAR? AS VELHAS TARTARUGAS NÃO TE VÃO PROTEGER DA MINHA IRA. NEM SABES O QUE TE ESPERA. PENSA MELHOR, JOÃO MIGUEL, PENSA BEM! ESTOU A DAR-TE A DERRADEIRA HIPÓTESE DE REGRESSARES A CASA PELA MESMA GRUTA POR ONDE AQUI CHEGASTE. APROVEITA, ESCUTA O MEU CONSELHO, ESTE É O MEU ÚLTIMO AVISO!
O menino olha para as botas militares e vê que elas perdem parte do seu brilho enquanto o malvado Mestre Tino berra pela cidade.
As tartarugas prosseguem o seu passeio com serenidade, como se nada tivesse acontecido.
- Ouviu alguma coisa Dona Amélia? – pergunta a primeira tartaruga à segunda.
- Não, nada, nadinha de coisa nenhuma Dona Amália. Será que ouviu alguma coisa Dona Adília? – pergunta a segunda tartaruga à terceira.
- Não, nada de nada. Será que alguém disse alguma coisa, Dona Aurora? – pergunta a terceira à quarta tartaruga.
- Mas do que é que vocês estão a falar? Eu não escutei nada. E a Dona Augusta, será que ouviu alguma coisa? – pergunta a quarta à última das tartarugas.
- Se eu escutei alguma coisa? Mas será que estão boas da cabeça? Claro que não! Não ouvi nadinha de coisa nenhuma. E tu, meu rapazinho? Será que tu escutaste algum ruído em Okatonga? – pergunta a Dona Augusta ao João Miguel, que cada vez entende menos o que aqui se passa.
- Eu ouvi a voz de Mestre Tino. Estava muito arreliado e berrava pela cidadela inteira. Será possível que as senhoras tartarugas não o tenham escutado? - pergunta o menino, algo intrigado com a situação.
Amália, Amélia, Adília, Aurora e Augusta voltam-se para ele com cara de poucos amigos.
- Parece impossível! – exclamam as cinco senhoras em coro.
- Parece impossível mas é verdade! – repete Dona Amália.
- O menino está a chamar-nos surdas. – dobra Dona Amélia.
- O menino tem de cumprir a sua missão, mas tem de saber comportar-se com senhoras idosas como nós. – explica Adília, compondo uns grandes óculos redondos na ponta do pequeno nariz.
- O menino é inteligente mas ainda tem tanto para aprender! – reforça Aurora numa voz esganiçada.
- Acho que me vou embora! – informa Augusta antes de recolher a cabeça para o interior da sua grande carapaça de pedra.
As restantes tartarugas acompanham este movimento, e todas escondem as cabeças no interior das imponentes carapaças de pedra.
- Mas, mas, o que é que as senhoras queriam que eu vos dissesse? – pergunta João Miguel com alguma ansiedade. – Eu não podia mentir. Se faltasse à verdade, aí sim, estaria a ser mal-educado. Eu não minto, a mãe sempre me disse que é feio mentir, é a pior coisa que podemos fazer! E a avó Dulce costuma dizer que as mentiras têm perna curta. – declara o menino muito decidido.
- As mentiras são como nós, têm pernas curtas! – dizem as cinco tartarugas em coro, antes de começarem a rir às gargalhadas.
- HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA! Não ligues às velhotas, João Miguel! – comenta a tartaruga Amália. – Nós já nem sabemos bem a nossa idade, mas gostamos imenso de nos divertir! Adoramos enervar este malvado buldogue que aprisionou os nossos reis, mas estamos demasiado estafadas para o derrotar.
Amélia volta a mostrar a cabeça e o longo pescoço, e faz um sinal com o nariz, apontando para o chão em frente ao menino. Com a sua poderosa pata direita afasta uma grande tampa de ferro, e explica:
- É aí por baixo, pelos esgotos e subterrâneos de Okatonga, que encontrarás o caminho que te levará aos calabouços do palácio. Uma vez lá chegado, terás de ser um bravo guerreiro para conseguires cumprir a tua missão. A partir de agora apenas podes contar contigo, pois ninguém pode vir em teu auxílio.
João Miguel recorda as palavras de Mestre Tino, mas não deseja regressar a casa sem libertar os reis de Okatonga. Podia voltar, podia aproveitar esta última hipótese e toda esta aventura não seria mais do que um simples sonho agitado, daqueles que se esquecem com as primeiras horas da manhã.
O menino faz questão de responder ao tirano num tom de voz ainda mais ameaçador:
- SE PENSAS QUE VOU DESISTIR ASSIM TÃO FACILMENTE, ESTÁS MUITÍSSIMO ENGANADO!
E sem mais demoras, o menino despede-se das imponentes senhoras tartarugas, e desaparece pelo escuro funil que dá acesso aos misteriosos subterrâneos de Okatonga.
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domingo, 11 de novembro de 2012

CAMINHO DE FOGO



11 de Novembro de 2012

53 – CAMINHO DE FOGO

As paredes, as ruas e os edifícios não param de se mexer, parece que não gostam do regresso de João Miguel.
O grande portão da cidadela abre-se e fecha-se de rompante, tal como as portas e as janelas de todas as casas.
O menino olha para a porta gigante, para as ruas desertas, para o céu sem pássaros, sem Beatriz.
João Miguel prefere ficar quieto, decide não avançar.
As paredes batem umas contra as outras com estridência.
Os degraus das escadas aparecem e desaparecerem de forma misteriosa, aumentando a confusão.
É impossível usar os passeios ou andar pelas ruas.
Pedras e estilhaços de vidraças são projetados por todo o lado.
A capital está turbulenta e o menino começa a ficar preocupado.
Tudo se mexe e se agita, tudo se altera, tudo se parte, tudo se volta a unir, tudo se desmancha e tudo se volta a agrupar, tudo se confunde e tudo se fortifica.
O menino agacha-se para não ser apanhado pelos fragmentos e estilhaços que voam pelos ares.
Os candeeiros das avenidas partem-se, crescem, dobram-se, dividem-se em dois, dividem-se em três e em quatro. Soltam-se do chão, ficam minúsculos, ficam imensos, despedaçam-se e voltam-se a compor.
- Porque será que se comporta assim a cidadela de Okatonga? Eu quero avançar mas não me arrisco a fazê-lo. Assim torna-se complicado encontrar os reis Alberto e Alberta, com a cidadela inteira nesta revolução. Tenho de ser muito habilidoso para andar no meio da confusão. Não tenho outra escolha.
João Miguel começa a caminhar com o máximo cuidado.
Mal dá os primeiros passos as portas e as janelas das casas abrem-se de par em par. A voz poderosa de Mestre Tino sai de dentro delas como um temporal ameaçador:
- NÃO QUERES REGRESSAR A CASA, MIÚDO? NÃO SENTES SAUDADES DA TUA MÃE, DA TUA AVÓ E DA TUA CAMA CONFORTÁVEL? AINDA PODES VOLTAR PARA TRÁS E REGRESSAR PELA MESMA GRUTA POR ONDE AQUI CHEGASTE! A TUA PASSAGEM POR OKATONGA NÃO TERÁ PASSADO DE UM SIMPLES SONHO AGITADO! ENTÃO? O QUE ACHAS DA MINHA PROPOSTA, JOÃO MIGUEL? CONFESSA, RAPAZ, JÁ ESTÁS COM MEDO! TREMEM-TE AS PERNAS E A TUA PELE ESTÁ ARREPIADA. Achas que a coruja Beatriz te deixou aqui sozinho porque tem confiança em ti? É isso que pensas? ESTÁS MUITO ENGANADO! NINGUÉM SE ATREVE A DESAFIAR O PODER SUPREMO DE MESTRE TINO, NINGUÉM!
No final do discurso, milhares de escaravelhos saem disparados do interior das habitações e avançam para o menino, que solta um desabafo:
- Será que é agora que eu vou morrer?
Na cabeça de João Miguel surge uma voz melodiosa que o tenta orientar:
- Usa a tua sabedoria, João Miguel, escuta aquilo que ela tem para te dizer e sê rápido a executar as instruções.
O menino abre de imediato a sacola de onde tira duas pedras polidas e uma garrafa de vidro de tamanho médio. Agita-a com vigor antes de a abrir.
Os escaravelhos estão cada vez mais perto.
Com perícia, retira a tampa e derrama o líquido esverdeado à sua volta e à sua frente, molhando os insetos que ficam da mesma cor.
De seguida, inclina-se junto ao chão e bate as pedras uma na outra provocando grandes faíscas com inusitada mestria. O líquido ilumina-se em chamas incandescentes que se espalham pela maioria dos rastejantes, abrindo uma clareira e um corredor de cinzas por onde o João Miguel desata a correr.
Os insetos, em chamas, retiram-se num alvoroço descontrolado. Fogem a arder, galgam os passeios e trepam pelos muros para fugir rumo à floresta.
A cidadela volta à sua forma original.
A capital deixa de se mexer e a desordem generalizada dá lugar a uma insólita arrumação.