14 de Novembro de 2012
54 – TARTARUGAS DE PEDRA
Um silêncio estranho tomou conta
das ruas após o imenso reboliço de Okatonga. É grande o desconforto causado por
tamanha tranquilidade.
O vento não sopra, os restantes
escaravelhos desaparecem quase tão depressa como invadiram as ruas e avenidas
da cidadela.
A floresta de Okatonga está parada,
impávida e serena, a aguardar uma ordem de alguém.
As botas militares deixam de fazer
aquele ruído tão característico que se habituou a escutar. Esta súbita acalmia
incomoda João Miguel, e ele não fala com receio de não conseguir escutar a
própria voz.
O chão da avenida por onde marcha o
João Miguel começa a erguer-se, muito devagar, até formar uma semiesfera
composta de pedras da calçada e que o impede de avançar. A pequena montanha é
três vezes mais alta do que ele, e tem uma aparência muito pesada. A enorme
semiesfera acaba por desprender-se do chão, por onde agora gira lentamente.
Outras quatro semiesferas formam-se
da mesma maneira, e rodopiam como a primeira. Após darem várias voltas, dois
pares de pernas carnudas saem de dentro de cada uma delas, bem como uma
comprida cabeça careca.
Sem barulho, sem ruídos e
vagarosamente, as cinco tartarugas de carapaça empedrada chegam perto do
menino, que não consegue disfarçar o espanto. Os répteis olham para ele como se
já o conhecessem. Sorriem, trocam olhares cúmplices entre si, olhares de satisfação,
mas nenhum som lhes sai pela boca.
De repente, dão início a uma
estranha conversa:
- AI, AI, AI, o raio da velhice! –
exclama a primeira tartaruga.
- Em que dia é que estamos? –
pergunta a segunda tartaruga.
- Temos de nos despachar que eu
tenho muitas coisas para fazer. – responde a terceira tartaruga.
- Eu não posso perder o muito tempo
pois a minha família depende de mim. – reclama a quarta tartaruga.
- Quantos dias vamos ficar por
aqui? – pergunta a última tartaruga.
- Isso é algo complicado de se
saber. – fala a primeira.
- Ai, ai, parece que foi apenas
ontem que aqui estivemos pela última vez! – diz a segunda.
- O meu marido não me queria deixar
vir. – afirma a terceira.
- Este negócio das aventuras com
meninos perdidos devia pagar impostos, ou ser sujeito a uma licença. São coisas
complicadas e nós já estamos a ficar velhotas para os ajudar. – informa a
quarta.
- Quem é que teria coragem de
cobrar uma taxa a meninos aventureiros? Quem? Depressa deixaríamos de existir
se isso acontecesse. Vocês estão a ficar meio tolas com a idade! – comunica a
quinta.
O menino fica confuso.
As tartarugas,
imponentes como pequenas serranias, continuam a discutir assuntos enigmáticos.
- Vamos lá ver o que irá
acontecer. Tenho a impressão de me ter esquecido de algo muito importante. –
volta a falar a primeira das tartarugas.
- Um destes dias
esqueci-me da chave de casa e não consegui abrir a porta. Estava do lado de
dentro da fechadura. – declara a segunda tartaruga.
- No próximo sábado vou
mudar as dobradiças das portas. Andam a fazer uns ruídos muito irritantes. –
anuncia a terceira tartaruga.
- Ai, Ai, que vida a
minha! Devo andar adoentada. Sabem que perdi mais de seis quilos? – argumenta a
quarta tartaruga.
- Vocês são mesmo umas
teimosas! Gostam de me arreliar. Estão fartinhas de saber que eu não gosto de
fazer estas coisas. – informa a quinta tartaruga.
- Não faço ideia do que
estás a falar. Sabes tão bem como qualquer uma de nós o que viemos aqui fazer.
– avisa a primeira tartaruga de pedra.
- Sim, temos de executar
aquilo que está estabelecido. – retribui a segunda tartaruga de pedra.
- Todas sabíamos que
isto iria acontecer. Repararam como o tempo mudou na passada sexta-feira? Não
existe um aviso melhor do que esse. – adverte a terceira tartaruga de pedra.
- Temos de nos dirigir
na direção do palácio. É lá que tudo tem de acontecer. – conta a quarta
tartaruga de pedra.
- E tu, pequeno rapaz?
Terás de nos seguir. Vamos indicar-te o local por onde deverás entrar para
alcançar as masmorras reais. É lá que Mestre Tino mantém prisioneiros os nossos
reis Alberto e Alberta. – participa a quinta tartaruga de pedra.
João Miguel está
encantado com a imponência das cinco senhoras de pedra. Avançam pela grande
avenida, vagarosamente, mantendo-o abrigado no meio delas, dando-lhe proteção.
As velhas senhoras estão aqui para o ajudar, disso não restam dúvidas.
Acompanham o menino, que vai espreitando por entre as pernas vigorosas das
cinco gigantes de pedra.
As casas, as ruas, os
candeeiros, as muralhas e os torreões voltam a estremecer. É a voz de Mestre
Tino que volta a ecoar como um trovão pela capital do reino.
- ENTÃO ESTA É A TUA
RESPOSTA, MIÚDO? PREFERES CONTINUAR COM A TUA AVENTURA. JULGAS-TE CAPAZ DE ME
ENFRENTAR? AS VELHAS TARTARUGAS NÃO TE VÃO PROTEGER DA MINHA IRA. NEM SABES O
QUE TE ESPERA. PENSA MELHOR, JOÃO MIGUEL, PENSA BEM! ESTOU A DAR-TE A
DERRADEIRA HIPÓTESE DE REGRESSARES A CASA PELA MESMA GRUTA POR ONDE AQUI
CHEGASTE. APROVEITA, ESCUTA O MEU CONSELHO, ESTE É O MEU ÚLTIMO AVISO!
O menino olha para as
botas militares e vê que elas perdem parte do seu brilho enquanto o malvado
Mestre Tino berra pela cidade.
As tartarugas prosseguem
o seu passeio com serenidade, como se nada tivesse acontecido.
- Ouviu alguma coisa
Dona Amélia? – pergunta a primeira tartaruga à segunda.
- Não, nada, nadinha de
coisa nenhuma Dona Amália. Será que ouviu alguma coisa Dona Adília? – pergunta
a segunda tartaruga à terceira.
- Não, nada de nada.
Será que alguém disse alguma coisa, Dona Aurora? – pergunta a terceira à quarta
tartaruga.
- Mas do que é que vocês
estão a falar? Eu não escutei nada. E a Dona Augusta, será que ouviu alguma
coisa? – pergunta a quarta à última das tartarugas.
- Se eu escutei alguma
coisa? Mas será que estão boas da cabeça? Claro que não! Não ouvi nadinha de coisa
nenhuma. E tu, meu rapazinho? Será que tu escutaste algum ruído em Okatonga? –
pergunta a Dona Augusta ao João Miguel, que cada vez entende menos o que aqui
se passa.
- Eu ouvi a voz de
Mestre Tino. Estava muito arreliado e berrava pela cidadela inteira. Será
possível que as senhoras tartarugas não o tenham escutado? - pergunta o menino,
algo intrigado com a situação.
Amália, Amélia, Adília, Aurora
e Augusta voltam-se para ele com cara de poucos amigos.
- Parece impossível! –
exclamam as cinco senhoras em coro.
- Parece impossível mas
é verdade! – repete Dona Amália.
- O menino está a
chamar-nos surdas. – dobra Dona Amélia.
- O menino tem de
cumprir a sua missão, mas tem de saber comportar-se com senhoras idosas como
nós. – explica Adília, compondo uns grandes óculos redondos na ponta do pequeno
nariz.
- O menino é inteligente
mas ainda tem tanto para aprender! – reforça Aurora numa voz esganiçada.
- Acho que me vou
embora! – informa Augusta antes de recolher a cabeça para o interior da sua
grande carapaça de pedra.
As restantes tartarugas
acompanham este movimento, e todas escondem as cabeças no interior das
imponentes carapaças de pedra.
- Mas, mas, o que é que
as senhoras queriam que eu vos dissesse? – pergunta João Miguel com alguma
ansiedade. – Eu não podia mentir. Se faltasse à verdade, aí sim, estaria a ser
mal-educado. Eu não minto, a mãe sempre me disse que é feio mentir, é a pior
coisa que podemos fazer! E a avó Dulce costuma dizer que as mentiras têm perna
curta. – declara o menino muito decidido.
- As mentiras são como
nós, têm pernas curtas! – dizem as cinco tartarugas em coro, antes de começarem
a rir às gargalhadas.
- HA HA HA HA HA HA HA
HA HA HA HA HA HA HA! Não ligues às velhotas, João Miguel! – comenta a
tartaruga Amália. – Nós já nem sabemos bem a nossa idade, mas gostamos imenso
de nos divertir! Adoramos enervar este malvado buldogue que aprisionou os
nossos reis, mas estamos demasiado estafadas para o derrotar.
Amélia volta a mostrar a
cabeça e o longo pescoço, e faz um sinal com o nariz, apontando para o chão em
frente ao menino. Com a sua poderosa pata direita afasta uma grande tampa de
ferro, e explica:
- É aí por baixo, pelos
esgotos e subterrâneos de Okatonga, que encontrarás o caminho que te levará aos
calabouços do palácio. Uma vez lá chegado, terás de ser um bravo guerreiro para
conseguires cumprir a tua missão. A partir de agora apenas podes contar contigo,
pois ninguém pode vir em teu auxílio.
João Miguel recorda as palavras
de Mestre Tino, mas não deseja regressar a casa sem libertar os reis de Okatonga.
Podia voltar, podia aproveitar esta última hipótese e toda esta aventura não seria
mais do que um simples sonho agitado, daqueles que se esquecem com as primeiras
horas da manhã.
O menino faz questão de responder
ao tirano num tom de voz ainda mais ameaçador:
- SE PENSAS QUE VOU DESISTIR
ASSIM TÃO FACILMENTE, ESTÁS MUITÍSSIMO ENGANADO!
E sem mais demoras, o menino
despede-se das imponentes senhoras tartarugas, e desaparece pelo escuro funil que
dá acesso aos misteriosos subterrâneos de Okatonga.
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