20 de Novembro de 2012
55 – O CÉU AZUL DE OKATONGA
A pesada tampa de ferro
é colocada de novo no respetivo lugar, enquanto o menino desce o poço, até uma
quase completa escuridão, por umas pequenas e ferrugentas escadas de ferro que
estão cravadas na parede.
Vai falando consigo para
não se sentir tão sozinho:
- Eu sou curioso,
sempre fui, e agora sei também que sou valente. Não tenho medo de quase nada,
só tenho medo que a mãe deixe de saber contar histórias ou que a avó Dulce se
esqueça da receita do bolo de chocolate recheado de chocolate. Aqui em baixo
cheira a esgoto, mal consigo respirar e está muito escuro. Vou ter de enfrentar
estes túneis fedorentos para encontrar o acesso às prisões do palácio real.
Um rio caudaloso avança
pelos subterrâneos, o que os torna muito húmidos e ruidosos. É extremamente
incómodo passear por aqui.
João Miguel continua a
descer pelas escadas enferrujadas e recorda o aviso das senhoras tartarugas; - A partir de agora apenas podes contar contigo, pois ninguém virá em teu
auxílio.
Ao recordar estas
palavras, começa a cair uma forte chuvada.
A água invade o túnel de
acesso aos subterrâneos por onde o menino desce, arrastando-o até às profundezas
dos esgotos da capital.
Por sorte, o mergulho
forçado neste rio de detritos não foi dado de grande altura. A maior parte da
descida já tinha sido realizada, mas nem a sua coragem, nem o seu espírito de
aventura o impedem de ter de respirar o ar fétido e carregado deste ambiente
sombrio.
O menino volta a falar
consigo próprio para não se sentir tão abandonado:
- Aqui em baixo misturam-se
os fedores mais horríveis de Okatonga. Respirar é uma tarefa praticamente
impossível. E para tornar as coisas ainda mais i n t e r e s s a n t e s, há
água a cair de todos os lados, dificultando-me a deslocação.
O menino abre a sacola,
mais uma vez, e retira um bonito boião de cerâmica branca, em forma de pera.
Numa quase total escuridão, abre o frasco e aplica a pomada gordurosa por
debaixo das suas narinas. Um perfume maravilhoso composto por fragâncias de
alfazema, jasmim, âmbar, miosótis, toranjas, madeiras raras do oriente, imbuia,
óleo de sândalo, canela e chocolates negros dos mais amargos do mundo,
invade-lhe todos os delicados poros e células do nariz eliminando por completo
os odores pestilentos dos esgotos de Okatonga.
- Assim torna-se muito mais fácil respirar e a
aventura subterrânea vai passar a ser menos cansativa. A água já me chega à
cintura, mas tenho de seguir com a minha viagem. Vou avançar usando a mesma
sequência de passos que a toupeira Anastácia me ensinou durante a caminhada
pelos túneis do esquecimento. Seguir a direito muitos metros, virar à direita e
continuar a avançar, virar de novo à direita, depois à esquerda, seguir em
frente por algum tempo, depois virar à esquerda, depois novamente à esquerda,
depois subir, subir e subir e continua a subir, depois virar à direita, seguir
a direito, virar à esquerda, seguir em frente, muito, muito tempo, o mais longo
de todos os períodos em que sigo a direito, antes de subir, de virar à
esquerda, de novamente virar à direita para depois descer um pequeno declive e
voltar a subir, mesmo a pique. AI CREDO, quase me desequilibrava, mas não caí!
Vou continuar esta longa caminhada, agora a direito, sem abrandar a marcha.
Viro à esquerda, depois à direita de novo, viro à direita e volto a subir. Já
não ouço os ruídos da chuva intensa que há momentos tinha começado a cair.
A escuridão é a mesma, continua igual desde que
resolveu descer aos misteriosos subterrâneos da cidadela.
Um arrepio gelado desce pelas costas do João Miguel.
Um vento gélido chega do fundo das galerias, sopra com
intensidade, sopra até tornar-se num imenso vendaval. O menino fica confuso, e
hesita na escolha do caminho.
Respira fundo três vezes, fecha os olhos e prepara-se para interpretar mais
esta mensagem da natureza:
- Estou a crescer! Estou a deixar de ser criança. Esta é a parte mais
importante da viagem. É por isso que sinto frio e este estranho desconforto.
Tudo faz parte do processo. Escuto, com clareza, as palavras da chuva e dos
ventos gelados. Eles fazem parte de mim. Eu sou a centelha que servirá de luz à
escuridão. Estou a aprender como todos os anteriores aprendizes de alquimista,
e já sei como resistir às tempestades. Elas
transportam histórias importantes para a nossa sobrevivência.
Um arrepio gelado volta a percorrer as
costas do menino, como um grande choque elétrico. Ele deixa que a ventania
gelada percorra o seu corpo.
A viagem pelos esgotos labirínticos está a
terminar.
O vento parou.
O escuro e o silêncio são, de novo, a sua
única companhia.
Levanta o braço esquerdo, bem alto, e
estica-se para tenta alcançar o teto da galeria, sem obter resultados.
O túnel cresceu durante o passeio,
aumentando a sensação de vazio e de abandono. João Miguel continua a tentar
alcançar o teto da galeria e descobre outros degraus de ferro, iguais aos que
usou para aqui entrar. Sobe por eles acima, com paciência e muito cuidado, até
alcançar o topo do longo sistema de esgotos da cidadela. Retira um pequeno pau
de giz de dentro da sacola de couro, e segura-o na mão direita, preparando-se
para escrever.
No teto da galeria desenha uma perfeita
circunferência branca com o pequeno pau de giz. Nele surge uma grande abertura
circular que é atravessada pela luz de um sol esplendoroso, e tudo se ilumina.
Nunca os subterrâneos de Okatonga
estiveram assim tão luminosos.
O menino sai dos esgotos pela abertura que
acaba de desenhar, e descobre um formidável jardim composto por centenas de
árvores exóticas de variadíssimas espécies. Palmeiras altíssimas encontram-se
espalhadas por todo o lado, um lago octogonal com repuxos que desenham espirais
de água de vários tamanhos, ocupa o centro do jardim. Este lago está rodeado por
estátuas e colunas gregas, e candeeiros do início do século XX. Tem bancos de madeira
pintados de verde, ornamentados a ferro forjado com bonitas pernas negras com patas
e garras de felinos.
Existe ainda um grande farol vermelho e branco,
situado numa zona mais remota, junto ao grande passeio e a um dos gigantescos portões
de ferro do jardim.
João Miguel consegue escutar, com clareza,
as vozes de duas pessoas, que chegam desse lugar. Ele sabe que só podem ser as vozes
dos reis Alberto e Alberta, que não o imaginam por aqui.
O céu de Okatonga está mais azul do que nunca.
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