05 de Julho de 2012
31 – CHOCOLATE, LIMÃO E CANELA
João Miguel segue as pegadas de Zebedeu através de
muitas salas espelhadas.
A poeira do soalho transforma-se em canela e o cheiro
alastra-se por toda a casa. O refúgio de Zebedeu fica saturado pelo cheiro
forte e intenso dessa especiaria, e também por um leve e perfumado toque de
limão. As pegadas do alquimista continuam visíveis na canela espalhada pelo
chão.
O menino está muito atento a estas pistas quando, de
repente, surge Zebedeu por um dos espelhos laterais, montado numa bicicleta
antiga e enferrujada.
- Ainda aí estás? Segue-me até ao meu gabinete, não
sejas preguiçoso! – diz o alquimista antes de voltar a desaparecer por uma
outra parede espelhada.
O João Miguel corre muito depressa até ao espelho por
onde o anão fugiu a pedalar, mas apenas consegue ver o seu próprio reflexo.
- Deve ser um espelho mágico, ou então, alguma porta
misteriosa como a velha porta de madeira da salinha de entrada.
O menino bate cautelosamente com a mão no grande
espelho da parede. Ao contrário dos espelhos que ele conhece, este é morno e
parece feito de tecido. A superfície espelhada é uma espécie de cortina que se
movimenta sempre que lhe toca.
- Que estranho. Afinal estes espelhos são cortinados
mornos feitos de tecido muito fino e delicado. Será que Zebedeu está por detrás
desta cortina? – questiona, incrédulo, o João Miguel. – É extraordinário este
espelho feito de pano. Assim nunca se parte. Pode ser dobrado e transportado
para todos os lados sem problema nenhum. Se me embrulhar nele, ninguém me
consegue encontrar.
O menino afasta com cautela o fino espelho de pano e
espreita por detrás dele. Do outro lado descobre um grande salão, em tudo igual
ao salão da casa da porta vermelha, que visitou na cidadela de Okatonga. Nesta
divisão existe a mesma mesa, o mesmo número de cadeiras, as mesmas madeiras
velhas e compridas do soalho, as mesmas paredes sujas e antigas com duas
janelas fechadas. A porta entreaberta também existe ao fundo da divisão. É de
lá que chega um intenso e agradável cheiro a bolo de chocolate, que se mistura
com o odor a canela e limão que entra pelo outro lado do espelho. Neste chão
não existem pegadas, só muitas linhas circulares que foram desenhadas pelas
rodas da bicicleta do anão, por cima da canela derramada. Os círculos estão
projetados ao redor da mesa, que se encontra no centro do salão.
- Que tal um belo e delicioso bolo de chocolate
recheado com creme de chocolate acabado de derreter? – pergunta a voz de
Zebedeu vinda do lado de dentro da porta entreaberta. – senta-te à mesa que eu
já aí vou ter contigo.
O menino obedece e sobe para a mesma cadeira que usou
durante o pequeno-almoço com Mestre Tino e os seus ajudantes invulgares.
Recorda essa bizarra refeição, os rostos dos animais e a confusão causada pelo
macaco Isidoro.
- Vais provar o meu belo bolo de chocolate recheado de
chocolate. É de comer e chorar por mais! – informa Zebedeu, antes de levar o
manjar ao salão.
Barulhos de pratos e de talheres misturam-se com
ruídos de gavetas e de portas a bater. O cheiro fica cada vez mais forte e
delicioso. O menino fecha os olhos e consegue ver as cores acastanhadas do bolo
antes de ele aparecer na travessa oval que Zebedeu transporta na mão direita, levantada
ao nível da cabeça.
- Ora então, cá estamos! Faz muito tempo que eu já não
cozinhava.
O anão Zebedeu é maior do que o menino imaginava. É
quase do mesmo tamanho de Mestre Tino. O seu rosto é redondo, com olhos
pequenos e escuros. Tem uma barba castanha e afilada que lhe cai do queixo numa
trança. As sobrancelhas são espessas e muito carregadas, e estão unidas por
sobre o seu nariz largo e saliente. O anão é calvo, mas tem um cabelo ondulado
que nasce na parte superior da nuca e lhe bate nos ombros estreitos e ossudos.
Zebedeu não é magro nem gordo. Tem uma boca larga e sorridente que tranquiliza
quem o vê pela primeira vez. Usa suspensórios de cabedal com um cinto largo de
fivela de ferro, e calça umas botas militares parecidas com as de João Miguel.
Mas o que mais impressiona na figura do anão alquimista são as suas mãos
gigantes, de dedos robustos.
- Afinal, tu não cheiras mal Zebedeu. A mãe contou-me
que não gostas de te lavar, mas até cheiras muito bem.
O anão solta uma sonora gargalhada enquanto deposita
na mesa o formidável bolo de chocolate recheado de chocolate.
- Se calhar a tua mãe não conhece a minha história! -
responde Zebedeu.
- Mas isso não é possível! A história de Okatonga é a
nova história da mãe. Todas as histórias da mãe nascem num saco que ela guarda
na despensa da cozinha, e as histórias que o saco lhe conta não são mentirosas.
A mãe diz que todas elas aconteceram, ou estão para acontecer. – exclama o João
Miguel algo exaltado.
O anão junta mais as suas fartas sobrancelhas enquanto
escuta o menino com atenção.
- Mas o que se passa contigo aqui em Okatonga, não é a
história do saco da tua mãe! Onde é que tu foste buscar essa ideia? – pergunta
Zebedeu.
O João Miguel fica admirado. Jura que o que lhe caiu
em cima, do alto da prateleira da despensa, só pode ter sido o saco invisível
das histórias da mãe. E o anão que agora fala consigo, é um anão alquimista
chamado Zebedeu. Tudo bate certo com aquilo que a mãe lhe começara a contar.
- Tu estás a ver é se me enganas, não é verdade? Tu és
Zebedeu, o célebre anão alquimista da cidadela de Okatonga, e é verdade que não
gostas de tomar banho! - confirma o menino enervado com tantas contradições.
- Hummm! Se calhar, agora que voltas a insistir nesse
assunto, és capaz de ter razão. Eu não gosto muito de tomar banho. É um
desperdício de água, e de tempo, estar para ali deitado na banheira a esfregar
o corpo. Não tenho alma de peixe e preciso de tempo para trabalhar. – responde
Zebedeu depois de cortar duas fatias de bolo de chocolate. – Agora come este
pedaço de bolo. Vais ver que está igualzinho ao que tanto gostas.
O menino fica espantado! Como é que Zebedeu conhece a
receita da sua avó?
- O cheirinho é o mesmo, e o recheio é igual ao do bolo
que a avó Dulce costuma fazer. Muito obrigado, Zebedeu, és muito simpático!
E os dois ficam sentados, em silêncio, a apreciar o
delicioso bolo de chocolate.
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