10 de Outubro de 2012
42 – OS TÚNEIS DO ESQUECIMENTO
Uma súbita descida de temperatura provoca um arrepio que
desce pelas costas do João Miguel. Um vento glacial chega das profundezas dos
corredores labirínticos e causa este desconforto.
- BRRRR… mas que frio Anastácia! Que ventania tão
gélida é esta?
A toupeira recomeça a subir, quase a pique. Tinha
pedido ao menino que evitasse fazer perguntas, mas ele não lhe obedeceu. O
vento sopra agora com maior intensidade, empurrando a grande toupeira cinzenta
que nem necessita de fazer esforço para avançar. E o João Miguel insiste:
- Está muito frio, um frio de rachar e este vendaval é
insuportável! Tens a certeza que este é o caminho por onde temos de seguir? Não
estarás perdida, Anastácia?
A grande toupeira cinzenta de nariz rosado começa a
ficar preocupada com tanta insistência. As perguntas do menino fazem com que o
vento sopre forte e baixam ainda mais a temperatura. Será que ele ainda não se
apercebeu da situação? Se o João Miguel continuar a fazer-lhe perguntas, vai
acabar por se transformar numa estátua de gelo.
Nestes túneis do esquecimento as memórias são transformadas
em ventos cortantes que os atravessam, causando os arrepios mais gelados do
universo. As toupeiras desenvolveram um talento raro ao longo dos tempos.
Apesar da sua cegueira, resistiram às tempestades e perceberam que estas
transportavam histórias muito importantes para a sua sobrevivência.
Anastácia entende que este é o momento oportuno para
dar um último conselho ao João Miguel:
- Escuta, ouve bem o que tenho para te
dizer! Não me faças mais perguntas! Concentra-te! Agarra-te a mim e abandona de
uma vez por todas essas preocupações!
Arrepios gelados voltam a percorrer as
costas do menino, como um grande choque elétrico. As imagens de muitos locais
que nunca visitou misturam-se com os seus pensamentos a uma velocidade
estonteante. São autênticos filmes a preto e branco e a cores, como os que vê
no cinema, que passam inteirinhos na sua cabeça, tão rápidos como o triciclo
dourado do anão Zebedeu.
Quer perguntar a Anastácia se ela sabe o
que se está a passar com ele, mas obedece às instruções da amiga e resiste a essa
vontade.
- Muito bem João Miguel, é isso mesmo!
Deixa que os ventos gelados percorram o teu corpo. Aprende! Vê, observa e
interpreta esta mensagem da natureza. Tu és a centelha que servirá de luz à
escuridão! Estás a recuperar os quase quatro dias que perdeste. O teu corpo
está a voltar a ser como era antes de teres entrado no laboratório de Zebedeu.
Aprende como todos os anteriores alquimistas e aprendizes de alquimistas
aprenderam antes de ti! Estás a crescer e a tornar-te um homem, estás a começar
a parte mais importante da tua jornada. O desconforto causado pelos ventos
gelados e por tanta escuridão fazem parte do processo.
João Miguel escuta com muita atenção as
palavras de Anastácia.
O vento gélido e cortante envolve-o e faz
agora parte de si.
Os filmes terminaram.
A toupeira para de avançar pelos túneis
labirínticos do subsolo de Okatonga.
O vento já não sopra.
O escuro e o silêncio são agora a sua
única companhia.
O menino deixa de sentir o corpo morno e
felpudo do animal e cai de costas no meio do chão
*
Subitamente, uma voz forte e tenebrosa
repete as palavras de à pouco:
- Quem és tu senão a entrada da caverna,
uma pequena centelha que se prepara para servir de luz à escuridão. Terás de
salvar os reis do nosso reino, terás de salvar os reis do nosso reino, terás de
salvar os reis do nosso reino…
João Miguel acorda, sobressaltado com a
gravidade desta voz. Olha ao seu redor, muito estremunhado, e vê o laboratório
de Zebedeu.
Levanta-se. A cambalear senta-se à mesa, e
trinca uma das maçãs que ali se encontra. Enquanto mastiga a maçã dá conta de
uma sacola bem familiar. Vai ser-lhe útil. Coloca-a a tiracolo e enche-a com
livros, frascos, caixas, um conjunto de ferramentas muito pequenas e algo
enferrujadas, folhas secas e uma lupa. Antes de a fechar, guarda lá dentro duas
maçãs, não vá a fome incomodá-lo.
Sente-se diferente!
Alguma coisa nele mudou. Sente-se um
pequeno aprendiz de alquimista com uma importante missão a cumprir.
- Então, João Miguel, o que achaste do meu
laboratório? – pergunta Zebedeu, surgido do nada no meio do salão. – Eu bem te
disse que este laboratório não tinha nada de extraordinário.
Um sorriso ilumina-lhe o rosto quando vê a
cara de espanto do menino ao dar conta da sua presença.
- Zebedeu? Mas…mas…como… que grande
surpresa! Não estava mesmo nada à tua espera!
O seu sorriso aumenta e o alquimista acaba
mesmo por projetar uma sonora gargalhada.
- Se pudesses ver a tua cara, João Miguel!
Se tu pudesses ver a tua cara neste momento… Agora vem comigo, não podes perder
mais tempo. Eu sei que tu também sabes que chegou a hora de partires.
Os dois amigos saem por uma misteriosa
parede do laboratório que se move como as águas cristalinas de um lago.
Do lado de fora, à espera do João Miguel, encontra-se
um belo velocípede dourado preparado para viajar.
- Este é o meu velho triciclo de ouro. Sobe,
senta-te nele e pedala. De que é que tu estás à espera? É ele que vai
indicar-te o caminho de volta à floresta, desde que não pares de pedalar!
João Miguel olha para o anão alquimista cheio
de vontade de o abraçar.
- Obrigado, muito obrigado por tudo!
Jamais irei esquecer esta prova de amizade!
O menino sabe o que tem de fazer.
Monta o velocípede de ouro.
Deposita a sacola num cesto que surge de
forma mágica atrás de si, por cima do eixo traseiro da viatura.
Agarra o volante com muita força.
Fixa com vigor as botas militares nos
pedais do triciclo.
Dá uso às pernas como fazia naquelas
tardes de Verão em que ficava atolado na gravilha do jardim, e arranca, com um formidável
impulso inicial, numa velocidade estonteante.
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