terça-feira, 9 de outubro de 2012

ANASTÁCIA




7 de Outubro de 2012

41 – ANASTÁCIA


O sol não brilha por aqui.
Quando foi a última vez que alguém se perdeu por estas paragens sombrias? Já ninguém se lembra.
As profundezas dos túneis obscuros da casa de Zebedeu são um pedaço do próprio esquecimento. Por debaixo dos alicerces da sua morada, existem caminhos secretos com milhares de anos de existência, que só as grandes toupeiras conhecem ao pormenor. O anão alquimista não se atreve a aventurar-se por esses corredores labirínticos, nem mesmo para alcançar as raízes mais raras, tantas vezes necessárias para as suas poções.
João Miguel rodopia sem parar.
O triciclo tinha ganho muita velocidade e quando o menino parou de pedalar, voou rumo ao desconhecido por onde agora vai girando.
Perdeu a sacola, perdeu o triciclo dourado, perdeu o norte, o sul, o este e o oeste.
A grande toupeira cinzenta de nariz rosado fareja todos os recantos deste lugar. Sabe quando algum estranho por aqui se aventura. Também sabe o local exato onde o João Miguel irá cair e já se encontra à sua espera.
- Eu sei onde vais cair e vim receber-te. Querias saber o que aconteceria se deixasses de pedalar, porque a tua curiosidade é grande demais. Sei, ainda, que queres levar algo deste mundo subterrâneo para o mundo lá de cima, e que acabaste de perder a tua sacola que terás de recuperar. O teu voo terminará aqui à minha frente. Faltam alguns instantes para aterrares neste monte de terra que ajeitei para te receber. Aqui em baixo reino eu, Anastácia, a grande toupeira cinzenta de nariz rosado. Eu sei o que terás de fazer para que tudo possa acontecer como está previsto. Vou contar até cinco, e quando eu terminar, será tempo de chegares.
O menino pensa enquanto rodopia pelo ar. Se aqui conseguiu chegar, também daqui será capaz de sair.
- Um, dois, três, quatro e cinco!
Assim que a grande toupeira cinzenta termina a contagem, o menino dá a última cambalhota no ar e cai de costas na terra fofa e húmida que Anastácia preparou para amortecer a sua chegada. O voo agitadíssimo deixou-o zonzo e indisposto, por isso a cama de terra sabe-lhe bem.
- Há muito tempo que por aqui não caía um visitante! Sê bem-vindo ao nosso mundo subterrâneo. Estávamos à tua espera, João Miguel, desde que iniciaste o teu passeio por Okatonga. A tua vinda é um motivo de alegria, apesar dos obstáculos que ainda terás de ultrapassar. O meu nome é Anastácia, sou a grande toupeira cinzenta de nariz rosado e estes são os meus domínios.
O menino não vê. Escuta as palavras de Anastácia mas não sabe onde ela está. O estômago ronca e os sons que provoca ecoam pelos túneis deste lugar como uma melodia desafinada. Levanta o corpo e senta-se, com as pernas esticadas, para descansar um pouco.
- Olá! Escuto e agradeço a sua ajuda preciosa, senhora Anastácia. Não a consigo ver, pois está muito escuro. Nunca estive num lugar assim como este, onde a escuridão até tem peso! Estou indisposto. Enquanto caía dei tantas cambalhotas que acabei por vomitar.
A grande toupeira de nariz rosado sorri, mas aqui ninguém pode dar conta desse detalhe.
- Não te preocupes! Dentro de pouco tempo deixarás de recordar estes túneis escuros e gelados onde acabaste de cair. Aqui, tudo acaba por cair no esquecimento. Esquecemo-nos de como éramos felizes quando caminhávamos livres debaixo do céu azul de Okatonga. Esquecemo-nos das cores, dos perfumes das flores, da frescura dos campos verdejantes, esquecemo-nos dos rostos dos nossos amigos e dos nossos vizinhos coelhos e ratos, dos vizinhos morcegos, escaravelhos, dos lagartos, das serpentes, dos esquilos, das martas, dos castores, enfim, de todos os vizinhos que connosco partilhavam a magnífica Okatonga antes da construção da cidadela, antes do primeiro dos alquimistas aqui ter construído a sua casa. Rastejávamos, corríamos, voávamos e saltávamos em liberdade, sem receios nem proibições. Brincávamos e usufruíamos de uma luz diferente nesses tempos de contentamento. Depois, alguns animais começaram a transformar-se, e começaram a ganhar vontades estranhas. Julgaram ser possível mandar nas outras espécies, mandar nos seus vizinhos, criar regras e impor restrições. Tudo mudou em menos de duas gerações de toupeiras. A estrela da noite e a estrela do dia coraram de vergonha, e a grande floresta de Okatonga transformou-se para sempre. Muitos animais fugiram, outros ganharam desconfiança e outros esconderam-se para evitar confrontos desnecessários. A minha espécie tomou conta das profundezas dos terrenos, escavou túneis e mais túneis até criar uma complexa rede de corredores escuros e labirínticos que atravessam as zonas mais remotas da floresta. Existem ligações milenares que apenas eu conheço. Tenho passado os últimos anos a ensinar todas essas passagens secretas às minhas doze filhas. Serão elas as futuras encarregadas destes lugares sombrios, distantes, frios e secretos. E contudo, não deixa de ser curioso que tenha sido aqui, nas entranhas de Okatonga, que os segredos mais extraordinários tenham sido por nós encontrados. Eu sabia que ias chegar e sei que terás de libertar os nossos reis Alberto e Alberta. Se fizeres um pequeno esforço serás capaz de recordar que é assim que tudo terá de acontecer.
As grandes toupeiras cinzentas de nariz rosado fazem parte da grande família de Okatonga, apesar de andarem sempre escondidas.
João Miguel escutou tudo com muita atenção.
Dos túneis mais afastados chegam barulhos sibilantes. Primeiro, soavam bastante afastados, mas agora estão bem mais percetíveis, e cada vez mais próximos do lugar onde os dois se encontram.
- Sabes, João Miguel, que aqui por baixo nesta rede de túneis se aventuram, de vez em quando, alguns jacarés de dentes afiados e andar ligeiro?
O menino não desejava acreditar nesta novidade.
- O quê? Jacarés de dentes afiados? Estás a dizer que estes barulhos que escutamos são jacarés de dentes afiados?
Anastácia usa o seu nariz rosado para levantar o João Miguel e colocá-lo no topo da sua cabeça.
- Sim! É verdade! Estou a dizer-te que este barulho pode muito bem ser provocado por um enorme jacaré de dentes afiados, enviado aqui abaixo por Mestre Tino para te encontrar. Agora agarra-te bem ao meu pelo, junto à minha nuca, e prepara-te para o resto da viagem.
João Miguel agarra-se à toupeira Anastácia, tal como ela o instruíra. Com grande mestria, a grande toupeira começa a rastejar pelo meio da imensa escuridão, fugindo dos ruídos ameaçadores.
Avança a direito muitos metros, vira à direita e continua a avançar, vira de novo à direita, depois à esquerda, segue em frente por algum tempo, depois vira à esquerda, depois novamente à esquerda, depois sobe, sobe e sobe e continua a subir, depois vira à direita, segue a direito, vira à esquerda, segue em frente, muito, muito tempo, o mais longo de todos os períodos em que segue a direito, antes de subir, de virar à esquerda, de novamente virar à direita para depois descer um pequeno declive e voltar a subir, mesmo a pique como se estivesse de pé a caminhar. João Miguel quase se desequilibra, mas não cai, e Anastácia continua a longa caminhada, agora a direito, sem abrandar a marcha. Vira à esquerda, depois à direita de novo, vira à direita e volta a subir. Por esta altura já se deixaram de escutar os ruídos ameaçadores do jacaré de dentes afiados que os perseguia.
A escuridão é a mesma, igual à escuridão que encontrou desde que resolveu parar de pedalar.
- Agarra-te bem, João Miguel! A partir deste momento a viagem passará a ser diferente. A partir de agora vais ganhar um importante poder. Mas antes disso, peço-te que tenhas paciência e que consigas evitar, por mais algum tempo, todas as perguntas que desejas fazer. Agarra-te a mim com todas as tuas forças. É isso e só isso que eu te peço!
O menino faz duas pequenas festas na cabeça de Anastácia, dizendo-lhe que assim irá proceder.
A grande toupeira de nariz rosado sorri, mas aqui ninguém pode dar conta desse detalhe.

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