quarta-feira, 2 de maio de 2012

SARMENTO e MEDINA


02 de Maio de 2012
9 – SARMENTO E MEDINA


Escondida bem no interior da floresta, a imensa clareira revela um cenário que o João Miguel estava longe de imaginar. Uma majestosa cidadela de aspeto medievo foi aqui construída. Em seu redor, a protegê-la, existe uma imponente muralha circular com dezenas de torreões, quase da altura do nariz do João Miguel. Os muros e as ameias dessa muralha alcançam os ombros do menino. Em cada torreão estão mais de vinte soldados-sapo de sentinela. Na entrada, junto ao portão principal, dois anafados gatos-guerreiros fazem a guarda e controlam todos os que até aqui se deslocam.
Um desses gatos espreguiça-se languidamente, esticando as suas patas, curvando as costas e abrindo a boca cheia de dentes afiados. O outro mantém uma postura muito mais austera. Está de pé, muito solene, a segurar uma longa lança com a pata esquerda, de olhar impávido e corpo direito. O seu capacete, impecavelmente lustroso, dá-lhe um ar muito digno e feroz, ao contrário do sonolento companheiro.
Da cidadela consegue vislumbrar-se um grande aglomerado de casas, todas elas com muito fumo a sair das chaminés. Existem ruas e becos estreitos e também três avenidas principais, mais largas, que desaguam num imenso terreiro. O João Miguel também vê, por cima das muralhas, um grande palacete avermelhado situado numa pequena colina junto ao terreiro central. Quanto ao coelho Belchior, não sabe para onde se terá escapado.
O portão da cidadela encontra-se aberto e tem, aproximadamente, a mesma altura do João Miguel. Os dois gatos estão de lanças cruzadas a barrar a entrada. Esta deve ser a famosa vila de Zebedeu. Deve ser aqui que ele fabrica os bálsamos, cremes e poções, ou melhor, fabricava. É que o anão alquimista desapareceu de Okatonga e ninguém sabe onde se refugiou. E também deve ser aqui que vive o rápido Belchior.
A cara do João Miguel está cheia de pequenos cortes e de feridas, os joelhos estão à mostra no pijama rasgado e o cabelo ganhou folhas e galhos durante a corrida. O menino parece que acabou de sair de uma grande luta. Corajosamente, aproxima-se dos dois gatos-guarda para lhes fazer algumas perguntas.
Os gatos olham para ele e ele para os gatos.
Ninguém fala.
Ninguém se mexe.
Lá ao fundo, atrás dos guardas, escuta-se o reboliço da cidadela, a azáfama dos seus habitantes. Ruídos de carroças, de animais, de crianças a correr e a saltar e a gritar. Também se sentem odores e muitos cheiros que chegam ao portão embrulhados numa espécie de névoa esverdeada.
Os gatos olham para o menino e o menino para os gatos.
E é então que o João Miguel pergunta:
- Olá! O meu nome é João Miguel. Podem dizer-me se esta é a famosa vila de Okatonga?
Os gatos não respondem.
Mantêm as lanças cruzadas e o ar severo.
Alguns soldados-sapo espreitam pelas ameias com interesse enquanto outros saltam de torreão em torreão muito atarefados.
Finalmente, passado quase um minuto, o gato que se tinha espreguiçado volta a abrir a boca. Ensonado, coloca de novo as patas no chão mas agora muito mais perto das botas negras do João Miguel.
Estica-se, estica-se muito, estica-se até não poder mais.
O outro gato não gosta da atitude do companheiro e grita exaltado:
- Para imediatamente com esse disparate! Vem já para aqui! Põe-te direito e cumpre o teu dever! Estou farto destas tuas parvoíces!
O gato ensonado não faz nada do que o outro gato lhe manda e continua a espreguiçar-se, demoradamente, junto aos pés do João Miguel.
- Deixa-me em paz! Quem és tu para dar ordens? Enquanto ficas para aí de pé, como uma estátua felpuda, ando eu pela floresta a fazer o teu e o meu serviço, NÃO É? – e virando-se para o João Miguel, explica – Tu não sabes, meu rapazinho, mas ali o Medina, com aquele ar de gato feroz e assanhado, tem medo de ratos e tem medo do escuro. Vejam lá! Missões noturnas de caça e patrulha não são para ele, coitadinho! Mas ficar aqui ao portão, elegantemente vestido, de lança e capacete reluzentes, isso, já não se importa de fazer! Caríssimo Visitante, eu sou o Sarmento e aquele ali é o Medina, o gato mais medroso da vila! Mas quem não o conheça…
O Medina não deixou Sarmento terminar o discurso e volta a gritar muito irritado:
- Para imediatamente com esses dispartes! Volta para aqui e cumpre o teu dever!
E o Sarmento lá se levanta, vagarosamente, de focinho muito enjoado e olhos de gozador. E é assim, com muita ironia, que dispara na direção de Medina:
- Sim, sim… grita para aí o que quiseres gato maluco! Ai, ai! Para imediatamente com essas parvoíces, diz o valente Medina, o valente e elegante guarda Medina! Ai, ai! Volta já para aqui, diz Medinazito, o vaidoso bichano! Vê-se logo que já tomaste o pequeno-almoço e que dormiste o teu sono de beleza. Mas enquanto tu dormias e comias, andava eu à caça e em missões de reconhecimento na escuridão da floresta… a FAZER O MEU E O TEU TRABALHO! Por isso, não me chateies!
O João Miguel não percebe lá muito bem o que se está a passar. A estranha discussão começa agora a ficar muito feia. Os animais avançam um contra o outro de unhas bem afiadas e com as lanças em riste decididos a guerrear. Os olhos brilham de raiva e, de bigodes retorcidos, preparam-se para o pior.
As suas patas estão quase a tocar-se quando soam bem alto as trompetas no cimo dos torreões.
Os dois guardas correm para as suas posições e assumem a mais estática das poses com lanças em riste. Os soldados-sapo colocam-se de pé junto às muralhas e nos postos de vigia dos torreões. Uma pequena multidão de habitantes começa a afluir à avenida e a música não para de tocar.
Uma carruagem aparece ao fundo da avenida, puxada por seis cavalos negros e conduzida pelo felpudo coelho Belchior. O João Miguel viu uma assim parecida quando visitou o museu dos coches com a sua mãe. Só que esta não é tão dourada e é muito mais pequena, como pequenos são os cavalos, as pessoas, as casas, as muralhas, os torreões e o palacete junto ao terreiro central. Toda a vila é uma perfeita miniatura. Apenas os gatos, o coelho e os sapos coloridos são do tamanho correto das coisas no mundo do João Miguel.
Ao som dos vivas e da música tocada pelas trompetas, a carruagem imobiliza-se junto ao menino que a esperava.
Belchior tem um capacete prateado na cabeça, enfeitado com uma bonita pluma vermelha.

- Um, dois, três, quatro, esta bela carruagem
Cinco, seis, sete, oito, de importante linhagem
            Nove, dez, onze, doze, faz o resto da viagem

. Um, dois, três, quatro, está quente no interior
Cinco, seis, sete, oito, vou levar-te ao meu senhor
            Nove, dez, onze, doze, sobe já, se faz favor

João Miguel obedece a Belchior e entra na viatura dourada.
Está ansioso por saber o que Okatonga tem para revelar.


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