sexta-feira, 11 de maio de 2012

ACIDENTE




06 de Maio de 2012

10 – ACIDENTE


Belchior dá sinais aos cavalos e a carruagem segue agora pelo meio da avenida onde se juntaram os habitantes da cidadela. Batem palmas, dizem adeus e gritam vivas ao ilustre Visitante.
O João Miguel está muito apertado no interior da viatura e nem os confortáveis bancos de veludo verde o ajudam a sentir-se melhor. O pavimento da avenida, construído com blocos de pedra irregulares e degradados, faz saltar o coche e transforma o passeio numa viagem incómoda. A avenida por onde Belchior conduz tem buracos abertos nas zonas onde os blocos de pedra se soltaram. Apesar da velocidade reduzida, o menino bate constantemente com a cabeça no teto do veículo.
Ao passarem por um destes enormes buracos, a carruagem salta com grande estremecimento e a roda traseira do lado direito solta-se fazendo-a tombar. O João Miguel é projetado pela porta e cai desamparado no meio do chão. A multidão vem de imediato em seu auxílio.
É neste instante que Belchior começa a berrar:

- Para trás, recuem todos
Não toquem no Visitante
Pode ter ossos partidos
A cautela é importante

Para trás, recuem todos
Quero ver se ele está bem
Pode ter ossos partidos
E outras feridas também
Um, dois, três, quatro, semeado neste chão
Cinco, seis, sete, oito, o Miguel, que é João
            Nove, dez, onze, doze, dói-me tanto o coração

Um, dois, três, quatro, semeada na avenida
Cinco, seis, sete, oito, correndo perigo de vida
            Nove, dez, onze, doze, está a criança caída

O João Miguel não se magoou, apesar do susto, e está cada vez mais admirado com estes estranhos acontecimentos. Os habitantes de Okatonga recuam para os passeios obedecendo às ordens de Belchior.
O coelho salta e berra, sem parar, junto ao menino que está sentado, de pernas esticadas, no chão empedrado da avenida.
- Belchior, ó Belchior! Eu estou bem, não me magoei. Foi só um susto, um pequeno susto, nada mais…
Mas os nervos tomaram conta do felpudo animal cinzento que está surdo e desorientado. E não para de gritar:

O que vai ser de mim?
Quem me pode socorrer?
A festa no meu jardim
Já não vai acontecer

Um, dois, três, quatro, semeei a barafunda
Cinco, seis, sete, oito, nesta rua vagabunda
            Nove, dez, onze, doze, mesmo antes da rotunda

Um, dois, três, quatro, semeado neste chão
Cinco, seis, sete, oito, o Miguel, que é João
            Nove, dez, onze, doze, dói-me tanto o coração
Um, dois, três, quatro, semeado no caminho
Cinco, seis, sete, oito, um imenso desalinho
            Nove, dez, onze, doze, quase feriu o rapazinho

Ninguém toca no menino
A ordem é para cumprir
Vou chamar o Mestre Tino
Para nos vir acudir

Assim que Belchior acaba de falar de Mestre Tino, desata a correr e a saltar pela avenida como um louco desaparecendo junto ao terreiro que se vislumbra lá ao fundo.
O João Miguel levanta-se, sacode o pó do pijama e das botas e segue a pé na mesma direção de Belchior. Agora já ninguém aplaude, ninguém dá vivas ou acena adeus com sorrisos de felicidade. Os rostos dos habitantes de Okatonga ficaram tristonhos e alguns até parecem assustados.

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